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Músicos contam como a guerra das Malvinas impulsionou o rock argentino

O cantor argentino Charly Garcia durante show no festival Vina del Mar no Chile (23/2/2003) - AP
O cantor argentino Charly Garcia durante show no festival Vina del Mar no Chile (23/2/2003) Imagem: AP

Vladimir Hernández

02/04/2012 08h55

A guerra das Malvinas (Falklands, para os britânicos), que aconteceu há 30 anos, ainda divide a sociedade argentina.

Principalmente, porque foi uma ação decidida por um governo militar que vinha realizando, durante vários anos, uma repressão feroz no país e que, neste momento, também era pressionado pelos problemas sócio-econômicos que afetavam a Argentina.

Mas há outro aspecto no qual esta guerra também divide opiniões: o suposto impulso que ela deu ao rock nacional.

Quando a guerra começou, em 2 de abril, com a chegada às ilhas das tropas anfíbias sob o comando do contra-almirante Carlos Büsser, a junta militar presidida por Leopoldo Galtieri decidiu "recomendar" aos oficiais de radiofusão que dessem preferência aos artistas nacionais no lugar daqueles que cantavam em inglês.

Tal "recomendação" se executou como uma ordem, como acontecia com qualquer outra "sugestão" dos militares que tinham assumido o governo com o golpe.

Desde então, as rádios passaram a transmitir somente as letras em castelhano, até que com o retorno da democracia em 1983, o organismo que regulava a radiofusão foi desativado.

Miguel Cantilo, músico e famoso roqueiro argentino, escreve em seu livro Que circo! memória y presente de meio seculo de rock argentino, que a proibição "lançou" o rock no país.

"Apesar de ter durado pouco, foi um grande incentivo, porque quando (as rádios) não sabiam o que tocar, começaram a descobrir que existiam discos (nacionais)", disse o músico a um jornal local recentemente.

Permissão
"Sem dúvida (a proibição) deu ao rock uma força especial. Acho que sobretudo por causa das letras, já que o rock tem um pouco mais de filosofia e faz com que as pessoas sejam mais conscientes das coisas", disse à BBC Mundo Piero de Benedictis, conhecido como "Piero".
O roqueiro tem duas músicas dedicas às Malvinas.

Em 1976, quando os militares tomaram o poder, o rock e seu poder contestador eram vistos como "suspeitos" ou "subversivos".
Músicos como Piero ou Cantilo se viram obrigados a exilar-se nos primeiros anos do governo militar, por temor à repressão.
Mas ao voltar, em 1982, além de terem começado a ser ouvidos no rádio, eles receberam permissão dos militares para fazer "shows solo", onde se recolhia ajuda para os soldados na guerra.

"(Emilio) Massera (membro da junta militar na época) me disse uma vez, em seu próprio escritório, 'se você for devagar, não terá problemas'", diz Piero.

A proibição não afetou bandas como Pink Floyd e sua mensagem de protesto com a música "The Wall", já que a música sequer era tocada na rádio por ser qualificada como "subversiva".

No entanto, foram silenciados grupos como Queen, Bee Gees e a cantora Olivia Newton-John, que estavam em voga nesse momento.
"De qualquer modo, não se podia abordar qualquer tema, mesmo cantando em castelhano. Tudo era muito controlado. Qualquer mensagem nas letras das canções era feita através de metáforas", disse Rafael Franceschelli, produtor musical e especialista na história do rock argentino.

Divergências
A situação política do momento era delicada. "Em cada show havia quase mais policiais que espectadores", relembra Piero.
Em um ensaio, Óscar Blanco, professor de Letras da Universidade de Buenos Aires e pesquisador da lírica do rock argentino, diz que apesar da possibilidade de tocar nas rádios, o rock nacional foi prejudicado pela ditadura.

"O rock foi incluído em uma operação política da ditadura - a guerra das Malvinas - não conseguiu mudar o sentido ideológico do show de solidariedade para os combatentes, e o rock nacional começou a se desintegrar junto com sua ideologia contracultural", disse.
"Sem querer, o rock nacional foi legitimado pelo mesmo sistema que o reprimiu".

Rinaldo Rafanelli, ex-baixista da banda Sui Generis, uma das mais populares do início dos anos 70, concorda com a afirmação de Blanco.
"Dizer que os militares impulsionaram o rock nacional com a proibição é simplista. Vínhamos de (um período de) estagnação cultural, onde se você tocava, podia ser preso", disse.

"A verdadeira época criativa do rock nacional é o princípio dos anos 1970, com os militares ninguém conseguiu gravar sequer um demo. Em todo caso, quando a proibição entrou em vigência, todo mundo tinha em casa seus discos em inglês que podia escutar."
Rafanelli se refere a um período em que surgiram bandas e artistas como Pescado Rabioso, Billy Bond, Almendra (de Luiz Alberto Spinetta), León Gieco, Raúl Porchetto, Pappo's Blues e Sui Generis.

Era o momento em que acontecia o primeiro governo democrático em décadas, o de Héctor Cámpora, e o momento em que Juan Domingo Perón voltava ao país após um exílio forçado pelas cúpulas militares.

"Mas logo há um grande buraco na produção nacional durante a ditadura (1976-1983); Os que continuaram foram os bonecos que a própria ditadura autorizou", afirma Franceschelli.

Explosão
Piero lembra que desde que voltou para a Argentina em 1981 até abril de 1982, não tinha autorização de ninguém para fazer shows.
Um amigo finalmente conseguiu para ele a reunião com Emilio Massera, e é aí que lhe permitem fazer uma série de shows que marcaram época.

"Mas o repertório era mais social e menos contestador. Era possível cortar a tensão que se sentia no ar. Havia policiais em qualquer lugar que se olhava", disse.

"Tudo floresceu novamente com Alfonsín", diz Rafanelli, fazendo referência ao retorno da democracia em 1983, com a eleição de Raúl Alfonsín.
"Quando os militares chegaram, o rock já estava presente. Desde que apareceram os Beatles, o rock havia explodido em toda a América."