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Morte de Miles Davis, que revolucionou o jazz, completa 25 anos

O trompetista Miles Davis, lenda do jazz que morreu em 28 de setembro de 2016 - Divulgação
O trompetista Miles Davis, lenda do jazz que morreu em 28 de setembro de 2016 Imagem: Divulgação

Silke Wünsch

28/09/2016 17h29

Sem o excêntrico e imprevisível trompetista, a história da música americana seria totalmente outra. Há 25 anos morria Miles Davis, pioneiro e explorador, do bebop ao pop. O som do trompete paira suave e puro acima do contrabaixo e bateria.

Solitário, galga notas mais agudas, para tombar em seguida. Cool e relaxado, brinca com as harmonias, explorando trilhas melódicas sempre novas, até aterrissar delicadamente, abrindo espaço para o próximo instrumento solista.

"Bags' Groove" dura 11 minutos e 12 segundos, mas para o ouvinte o tempo parece voar. A gravação é o resultado de uma sessão na noite de Natal de 1954, com a Miles Davis Band e dois convidados já famosos na época: Milt Jackson (vibrafone) e Thelonious Monk (piano).

Davis posa no início de carreira - Reprodução - Reprodução
Davis no início de carreira
Imagem: Reprodução

A sessão não transcorrera sob um bom signo. O chefe da gravadora havia chamado os dois outros artistas sem o conhecimento de Miles. Ele não tinha nada contra Jackson, mas, a seu ver, esse Monk "só toca acordes errados".

Por isso, ficou proibido de acompanhar o trompetista líder durante os solos. Tais circunstâncias acabam se revelando um golpe de sorte. Pois Miles tem plena liberdade para improvisar, e a diferença entre Jackson e Monk é valorizada de forma genial.

Os estilos extremamente distintos dos músicos transformam essa gravação numa das mais excitantes do jazz dos anos 50. São gravadas logo duas versões de Bags' Groove, lançadas três anos mais tarde num LP homônimo.

Entre as cinco outras faixas, igualmente antológicas, está "Oleo", do saxofonista Sonny Rollins. Aqui se ouve pela primeira vez o típico som nasal do trompete com surdina de metal, que se transformará na marca registrada de Miles.

O crítico Whitney Balliett descreve o jeito do trompetista tocar nesse álbum como "alguém que anda sobre cascas de ovos". A opinião da cena jazzística é unânime: o álbum Bags' Groove é a pedra fundamental do modern jazz.

Mas a história não acaba aí. Vanguarda e "liberdade controlada" Desde que, em meados dos anos 1940, o lendário saxofonista Charlie Parker contratara o jovem trompetista para tocar em seu be-bop combo, Miles Davis trabalhava como um louco, explorando dimensões musicais sempre novas.

Após fundar seu primeiro quinteto, em 1957 ele gravou nada menos do que quatro LPs. Os integrantes eram o saxofonista John Coltrane, pianista Red Garland, baixista Paul Chambers e o baterista Philly Joe Jones —todos músicos que mais tarde ocupariam o primeiro escalão do jazz.

Tendo Bill Evans como arranjador, nasce também um álbum de big band inusitado: a orquestra não tem saxofones, mas, em compensação, flautas, um oboé e trompas. O único solista é Miles, ao flugelhorn, instrumento de som mais doce e redondo do que o do trompete.

"Miles Ahead" (jogo de palavras com "milhas adiante") é quase um álbum conceitual; uma suíte em que cada peça se funde com a seguinte. Um ano mais tarde, Miles Davis volta a ativar seu quinteto, ampliando-o com Cannonball Adderley ao saxofone alto.

O resultado é mais um disco lendário, de título evocativo: Milestones pode ser interpretado tanto como "marco miliar" quanto como "sons de Miles". De lenda em lenda, o ano de 1959 vê o lançamento de "Kind of Blue".

Miles Davis durante as sessões de gravação do álbum "Kind of Blue", em 1959 - AP Photo/Sony/Legacy, Don Hunstein - AP Photo/Sony/Legacy, Don Hunstein
Miles Davis durante as sessões de gravação do álbum "Kind of Blue", em 1959
Imagem: AP Photo/Sony/Legacy, Don Hunstein

A essa altura, Miles é um dos músicos mais bem-pagos do mundo —um feito ainda mais admirável por se tratar de um afro-americano. Ele se torna modelo para toda uma geração de artistas negros, casais batizam os filhos com seu nome. O jazzista pode escolher à vontade com quem quer tocar, e opta pelos melhores.

Em 1964, funda seu segundo quinteto, com Herbie Hancock ao piano, Wayne Shorter ao sax soprano, o contrabaixista Ron Carter e a bateria de Tony Williams. Todos são solistas estabelecidos e pertencem à cena vanguardista do free jazz dos anos 60.

Porém Miles os integra num grupo e mostra a diferença entre tradição e vanguarda. "Você não deve simplesmente tocar de maneira caótica. Isso não é liberdade. Você precisa de liberdade controlada", cita o especialista alemão de jazz Joachim Ernst Berendt.

"O maior" em crise pessoal e criativa A inclusão de recursos eletrônicos no mundo da música pop e rock é uma inspiração para Miles Davis.

Ele afirma ser capaz de formar uma banda melhor do que a de Jimi Hendrix, e recruta, entre outros, os pianistas Joe Zawinul e Chick Corea, o baterista Billy Cobham, o guitarrista John McLaughlin e Dave Holland no contrabaixo.

O resultado são dois álbuns pioneiros: "In a Silent Way" e "Bitches Brew". Um novo estilo conquista a cena, numa eletrizante combinação de jazz-rock, fusion jazz, electric jazz, com os instrumentos indianos sitar e tabla contribuindo com elementos de world music.

Miles transforma o som do trompete com efeitos eletrônicos como o wah-wah, até então reservado aos guitarristas soul e funk, sua sonoridade se torna mais percussiva. Miles quer fazer música para o público negro, mas tem que constatar que seus ouvintes são predominantemente brancos.

À revista londrina Melody Maker desabafa: "Eu não toco para os brancos, cara. Quero escutar um negro dizer: 'Sim, eu curto Miles Davis'!" Como quer a lenda, esse seria o motivo para ele passar a tocar quase sempre de costas para o público.

Mas desse modo também se concentra melhor em sua banda e seus músicos; por vezes, toca com uma mão no trompete, a outra no sintetizador. Miles é "o maior" e quer continuar sendo.

Mas, com o passar do tempo, a necessidade constante dessa sensação se torna quase uma doença. Em meados dos anos 70, afasta-se da vida pública, tendo excedido os próprios limites, perdido o fio condutor musical.

A psique o aflige, as drogas também. Obra inacabada Seis anos mais tarde, contudo, a crise está superada. Em 1981 ele fascina o público do New York Jazz Festival: o velho Miles está de volta, com o som puro do trompete, sem eletrônica.

Ele volta a colocar ordem no jazz-rock, tornado caótico, torna-o novamente consumível. Após dois vigorosos álbuns funk, acaba por descobrir o pop. Em You're under arrest, de 1985, inclui o sucesso de Michael Jackson "Human Nature" e "Time After Time", de Cyndi Lauper.

Seus críticos consideram o disco enfim— pop demais. Miles nem liga: com quase 60 anos, ele já revolucionou o jazz pelo menos três vezes, foi "o maior": agora faz o que lhe dá prazer.

Miles Davis durante festival Berkeley, nos Estados Unidos, em 1985 - Redferns/Getty Images - Redferns/Getty Images
Miles Davis durante festival Berkeley, nos Estados Unidos, em 1985
Imagem: Redferns/Getty Images

Longe da imagem de artista problemático, até brinca com o público, é simpático com os jornalistas. Liberto, ele sabe que não precisa renovar a música mais uma vez, e por seu tranquilo álbum Tutu, de 1986, conquista um terceiro Grammy.

Cinco anos mais tarde, entra no estúdio pela última vez, com o produtor de hip-hop Easy Mo Bee, para começar a gravar "Doo-Bop". No entanto, só consegue completar seis faixas, antes de um derrame colocá-lo em coma.

Em 28 de setembro de 1991, a família decide mandar desligar os aparelhos médicos que o mantêm vivo. Seu último disco é lançado postumamente no ano seguinte. Easy Mo Bee acrescenta faixas adicionais a partir de gravações inéditas do trompetista. "Doo-Bop" é o álbum mais vendido de Miles Davis.