De tropicalista inspirado, Caetano chega aos 70 abraçando contradições que um dia denunciou
Nascido há exatos 70 anos, Caetano Veloso está presente no imaginário nacional, ininterruptamente, desde 1967, quando cantou em duo com Gal Costa a bossinha tímida "Coração Vagabundo". Ao longo desses 45 anos, fixou uma imagem complexa, ambígua, não raro contraditória - desperta paixões e ódios em proporções equivalentes -, e esse caráter sempre ambivalente é a própria essência de seu marketing pessoal. Com o perdão do clichê, há muitos, inúmeros Caetanos: o grande artista, o homem que ama as polêmicas, o lobo em pele de cordeiro, o cordeiro em pele de lobo, o esquerdireirista, o falastrão que tempera genialidade musical com falatório político em ritmo de besteirol etc. etc. etc.
Na data redonda dos 70, cabe a pergunta fatídica: qual, entre os 1001 Caetanos, é o Caetano que importa, faz a diferença, impulsiona a história de seu (nosso) país para frente, será lembrado e celebrado com júbilo daqui a 50, 100, 200 anos? O artista tropicalista inquestionavelmente inspirado é a resposta óbvia e suficiente. Tentemos fugir do óbvio.
Desde a eclosão tropicalista de "Alegria, Alegria" (1967) e "Divino, Maravilhoso" (1968), a grande contribuição de Caetano à cultura brasileira tem sido a de agir bravamente em prol da distensão de costumes num país (inicialmente) sob ditadura. Entre muitos participantes engajados ou circunstanciais do movimento, o triunvirato formado por Caetano, Gal e Gilberto Gil virou nosso imaginário de pontacabeça no campo fechado e opressivo do comportamento.
No advento da Tropicália, Gil, negro vestido em batas africanas, e Gal, de cabeleira black power, simbolizaram o levante racial. Gal e Caetano, de gestual e vestuário femininos, glamurosos, sopraram ventos feministas, sob o refrão romântico "Baby, baby, I love you". Caetano, Gal e Gil, cada um à sua maneira, borraram distinções raciais, de gênero e de identidade sexual. Caetano, mais que qualquer outro tropicalista, deixava no ar o gesto gay, a sexualidade múltipla, o Stonewall à baiana, o direito masculino à superação das prisões corporais e mentais da masculinidade.
Caetano, Gal e Gil, cada um à sua maneira, borraram distinções raciais, de gênero e de identidade sexual
Em termos musicais, Caetano talvez nunca tenha sido tão genial quanto Gil ou Gal. Mas sempre foi o mais valente dos três, o mais disposto a afrontar e enfrentar, a peitar o embate, a ir como cobaia para a frente de batalha. É perturbador constatar que sob muitos aspectos tenha se desenvolvido num conservador agressivo, conforme ficava adulto, maduro e velho, como agora ele mesmo gosta de se definir. Mas isso não importa. Ainda que aqui e ali possa hoje atuar como preconceituoso ortodoxo, sua grandeza reside no exteminador de preconceitos que foi quando interpretou, entre muitos personagens, o tropicalista, o doce bárbaro, o dançarino odara, o muso new wave, o porta-bandeira dos eclipses ocultos nos comportamentos de todos nós que somos seus admiradores.
Na virada de 1968 para 1969, quando a tempestade tropicalista mudava para sempre os rumos da quase sempre contida e conservadora música "popular" brasileira, a ditadura militar selecionou Caetano e Gil, justamente eles dois, para o exílio político. Até hoje não compreendemos exatamente os porquês dessa escolha dos militares (por que Caetano e Gil?, por que não Chico Buarque?). Mas quanto mais os anos passam mais parece evidente que os cabelos desgrenhados, a postura hippie, os gritos primais e a carranca africana e as bichices de Caetano e Gil incomodaram a ditadura como nunca incomodaram os terninhos de Chico e Edu Lobo ou as golas engomadas de Elis Regina e Nara Leão.
Como qualquer figura contraditória por natureza, Caetano acabou por encarnar várias das contradições e dualidades que principiou denunciando. Após combater a caretice de agressividade enrustida da MPB de festival, ele se uniu a Gil, Gal, Chico, Tom Zé, Elis, Maria Bethânia, Paulinho da Viola, (por que não?) Roberto Carlos e inúmeros outros na composição de uma nova elite, uma elite MPB. Mesmo em silêncio, tornou-se feroz na defesa corporativa dos seus, em inúmeras ocasiões.
Caetano se mantém na dianteira (ao lado de Chico) entre os mais influentes e barulhentos artistas/ agentes políticos da geração deles
No cenário difuso e confuso produzido a partir do pacto silencioso entre (ex-)inimigos (tropicalistas de um lado, sambistas/emepebistas de outro), Caetano soube guardar-se como retrato vivo e porta-voz de uma Tropicália supostamente límpida e cristalina: "Beleza Pura", "Não me Amarra Dinheiro, Não". Escondeu, sob o colorido capuz tropicalista, sua crônica indecisão entre o modo Gil e o modo Chico de encarar música, cultura, política, cidadania.
Mais uma vez, a história o atropelou. O modo Gil de encarar o mundo apossou-se do Ministério da Cultura, e Caetano conservou-se em cima do muro. Com Ana de Hollanda, o modo Buarque - tradição, sobrenome, propriedade - ocupou o MinC, e Caetano conserva-se em cima do muro. A hesitação é face feia da ambivalência, o grande valor positivo que Caetano introduziu indelevelmente na tal MPB.
Até aí ele conta com enorme adesão, suficiente para mantê-lo na dianteira (ao lado de Chico) entre os mais influentes e barulhentos artistas/agentes políticos da geração deles. A ambiguidade de Caetano é o que o aproxima de nós, tanto de quem o ama quanto de quem o odeia. E ele, esse cara, assimilou na surdina a máxima cantada por Elis em 1979, de que "o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões". Rei-leão mais sutil que o outro "rei" da canção nacional (Roberto Carlos), mantém sob seu poder hipnótico, igualmente, os amantes e os odiantes. Nesse caso, para os bens e para os males, somos nós, mais que nosso espelho-narciso-exemplo Caetano, os verdadeiros ambíguos, indecisos, ambivalentes, contraditórios.
* Pedro Alexandre Sanches, 44 anos, é jornalista, crítico musical e autor dos livros "Tropicalismo - Decadência bonita do samba" (2000) e "Como dois e dois são cinco" (2004).
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