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Pioneira no metal extremo, transexual rompe barreiras, mantém "urros" e é até cantada por fãs

Em 2007, Dan Martinez resolveu atender aos seus desejos e passou a se chamar Marissa - Divulgação
Em 2007, Dan Martinez resolveu atender aos seus desejos e passou a se chamar Marissa Imagem: Divulgação

Maurício Dehò

Do UOL, em São Paulo

21/12/2012 05h00

Quem vê Marissa Martinez no palco de um show da banda de grindcore Cretin pode imaginar que ela é só mais uma mulher que venceu as barreiras do preconceito e conquistou seu espaço com a guitarra em punhos e os agressivos vocais guturais. E está certo. Em termos. Marissa é sim uma mulher liderando uma banda de metal extremo, em um ambiente amplamente machista e muitas vezes preconceituoso. O detalhe é que, há apenas cinco anos, Marissa era um cabeludo e barbudo, chamado Dan.

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A norte-americana de 37 anos se declara a primeira transexual do metal extremo – pelo menos, a primeira a abrir o jogo em relação ao tema. Em 2007, Dan resolveu passar a Marissa, pondo fim a anos de sofrimento e negação que vivia na vida pessoal, que não a permitia ser o que ela chama de "eu mesmo". O longo processo de transformação, que envolve cirurgias, tratamento hormonal e psicológico, foi vencido. Uma coisa, no entanto, permanece a mesma, a sua dedicação à banda. De saia, decote e maquiagem, mas com os mesmos vocais guturais de outrora, a novidade é o apoio de antigos e novos fãs e até cantadas dos mais atirados.

“Eu tinha de fazer isso para poder viver minha vida autenticamente, como eu mesma”, explica Marissa ao UOL, resumindo em poucas palavras a experiência complicada vivida desde a adolescência. “É muito mais complicado que isso. Eu não acordei uma manhã com a súbita ideia de que seria divertido passar por tudo isso. Foi uma experiência de sentimentos incrivelmente complexos e confusos, desde minha puberdade.”

Conflito interno e epifania

Vocalista do Life of Agony virou Mina

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Outro caso que surpreendeu dentro do metal foi o do vocalista do Life of Agony, banda veterana de Nova York. Depois de mais de 20 anos liderando a banda, Keith Caputo passou a falar de si mesmo como mulher e anunciou em julho de 2011 que passaria a ser tratado por Mina Caputo e que faria operação para mudar de sexo. O grupo acabou em 2012.

Filho de um guitarrista de uma banda local de rock em San Jose (EUA), Dan cresceu com a expectativa de seguir o mesmo caminho e ganhou um violão aos cinco anos, após a morte do pai. Foi apenas quando passou a andar de skate que a música lhe chamou a atenção, ao ouvir grupos como Metallica e Misfits, influenciando o jovem a ter sua própria banda de heavy metal – hoje, além do Cretin, é guitarrista do Repulsion, banda criada nos anos 1980 muito respeitada na cena grindcore.

Esse caminho estava sacramentado em seu futuro, mas algo incomodava Dan mais profundamente. “Quando meu corpo passou a mudar, com 11 ou 12 anos, começaram os sentimentos conflituosos. Mas eu não os entendia, não conseguia colocar em palavras. A minha família e a sociedade reforçavam minha apresentação como homem. Observando as meninas, no entanto, aquilo parecia algo mais confortável para mim, apesar de eu ainda não enxergar que ‘eu era elas’. Combinando isso com a falta de informação, nada me ajudava a enxergar que eu era uma transexual. Eu via isso apenas como uma extensão da homossexualidade, algo que me dava vergonha”, conta ela.

Dan desde a adolescência tinha a mania de se vestir com as roupas da mãe, e secretamente o fez até já ser adulto. Foi apenas aos 30 anos que a ficha caiu. “Eu mantinha um estado de negação, brigava contra os meus sonhos e escondia o ‘cross dressing’. Quando completei 30 anos, tive uma epifania. Eu me dei conta de que era adulta, que tinha de ter um nível de respeito próprio e dignidade para viver uma vida honesta. O fato de eu manter segredos de mim mesma e temer enfrentá-los me zangou de tal forma que eu não podia mais ceder ao medo”, detalha a norte-americana.

Ela precisou de um ano e meio antes de fazer a transformação, um processo de pesquisa, exploração e entendimento do que passaria, acompanhado de terapias. Já pronta, passou a tomar hormônios, mudou legalmente seu nome e sexo, fez plásticas no rosto e nos seios e, enfim, passou a viver uma vida normal. Apesar de experiências como lésbica (já como Marissa), hoje está noiva de um homem, tem um trabalho regular desenvolvendo softwares na Lucasfilm e, é claro, se dedica às suas bandas de metal.

Cretin, "The Yawning God", do disco Freakery (2006):

Assédio dos fãs, cantadas e a reestreia com o Cretin

Apesar da “troca de figuras” no palco dos shows da banda – afinal, Dan foi trocado por uma mulher de saias e meia-calça –, o que menos mudou na vida de Marissa foi no campo da música. Assim como sua família, os companheiros de Cretin estranharam a repentina mudança. A norte-americana tentou manter a banda, mas mesmo com o apoio de todos foi decidido dar uma pausa para que ela passasse o período mais complicado.

Primeira gravação como Marissa foi com banda brasileira

Coube a uma banda brasileira a estreia de Marissa como vocalista, enquanto o CD novo do Cretin não sai. O The Black Coffins, de São Paulo, convidou-a a cantar na música Dead Planets, de “Dead Sky Sepulchre” (2012). “Sou fã do Cretin desde 2006 e acompanhei todo o processo meio que ao vivo por lá”, diz o vocalista Thiago Vakka. “Desde o primeiro contato, ela sempre foi muito gente fina. Topou na hora, mandamos a música e dois dias depois ela me mandou a parte que sugerimos”. Marissa é só elogios em relação ao grupo. “Eles são ótimos. Eu os conheci pelo Thiago, em uma entrevista para o seu blog e, quando ele me convidou, aceitei. Sentei em meu sofá, gritei na direção do meu iPad e mandei para eles (risos)”, disse ela, uma fã de bandas brasileiras como Sepultura e Sarcófago.

Tudo isso aconteceu logo após o lançamento do primeiro disco do grupo, “Freakery”, de 2006. A banda foi criada pelos amigos Dan e Matt Widener (baixo) em 1992, influenciada por nomes como Carcass, Napalm Death e Terrorizer, pilares do grindcore – o gênero surgiu no fim da década de 1980, misturando metal extremo, punk e hardcore. Após esse álbum e uma pausa, algumas reuniões ocorreram em falso, e agora o grupo está na ativa, ensaiando e compondo para um lançamento em 2013.

Marissa admite que toda a sua transformação impulsionou a fama do Cretin, mas não tem planos de usar isso na hora de compor e mesmo em sua atuação como vocalista em estúdio e ao vivo. “Ainda não escrevi nenhuma canção sobre o que passei e não acho que vou. Seria muito óbvio. Quanto à minha voz, uma cirurgia de mudança de sexo não a afeta em nada, e nem os hormônios, já que os tomei como adulta. Eu treinei minha fala normal (para soar mais feminina), mas ainda consigo fazer os antigos vocais guturais. [No Cretin,] sou basicamente a mesma”, explica ela.

O Cretin só fez um show desde o “surgimento” de Marissa, mas o contato com os fãs e as apresentações com sua outra banda, o Repulsion, mostraram novidades para ela, algumas até lisonjeiras. “É verdade... Eu sou cantada muito mais hoje em dia! Nunca recebi uma cantada no passado, e hoje os homens realmente caem em cima”, admite Marissa.

Apesar de saber que o metal extremo muitas vezes sofre com fãs de mente fechada , Marissa diz que não tem sofrido grandes preconceitos. “A vez que realmente me pegou foi quando completos estranhos gritaram algumas bobagens na rua. Na internet, sempre há alguns comentários negativos, mas tento não dar atenção. Além disso, meus fãs aparecem rapidamente e os calam. Sinto-me amada, não tenho nem como retribuir aos meus fãs pelo apoio”, adiciona.

Marissa esbanja orgulho de ter conseguido soltar as amarras do passado, mas não se vê na missão de passar grandes lições de moral com sua história ou levantar bandeiras a favor da causa. “Quem já é contra transexuais não se comoverá por minha causa. Quem tem a mente limpa sobre o assunto, talvez. Não vejo lições particulares, mas uma junção de coisas que ultrapassa aquelas frases batidas como ‘trate os outros como quer ser tratado’ ou ‘apesar das diferenças, somos todos iguais’. A minha transição foi única, mas acho que cada pessoa vive mudanças de um tipo próprio e é isso o que nos ajuda a definir e entender a nós mesmos”, conclui.