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Nana, Dori e Danilo abrem baú de memórias para centenário de Caymmi

Dori, Nana e Danilo: irmãos revisitam baú do pai, Dorival Caymmi - Sylvia Gosztonyi/Divulgação
Dori, Nana e Danilo: irmãos revisitam baú do pai, Dorival Caymmi Imagem: Sylvia Gosztonyi/Divulgação

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

07/08/2013 12h29

Em abril de 1974, Dorival Caymmi era notícia no “Jornal Nacional”. Ele e Irajá, o cachorro da família que havia fugido durante passeio com a neta Stella no Rio de Janeiro. Cantor, pintor e um dos pilares do cancioneiro popular brasileiro, Dorival saiu pelas ruas da capital fluminense batendo de prédio em prédio em busca do mascote. No mesmo dia, o ator e poeta Mário Lago, grande amigo do compositor, apareceu na TV dizendo ter achado um cachorro de pelos negros que, por tristeza, não comia há dias. A coincidência e o reencontro daquele senhor de 60 anos com o cachorro teve espaço no maior telejornal do país. “Papai tinha loucura por Irajá. Era um pequinês terrível que adorava ‘comer’ a perna do (músico e produtor) Aloysio de Oliveira quando ele nos visitava”, relembra o músico Danilo Caymmi, às gargalhadas.

Centenário terá Chico, Caetano, Gil e concerto com “ópera dos pescadores”


“Caymmi”, lançado pelos irmãos Dori, Nana e Danilo, é apenas o primeiro passo para as comemorações ao centenário de Dorival, em abril de 2014, que na verdade começou com a publicação de "O que É que a Baiana Tem? - Dorival Caymmi na Era do Rádio", escrito pela neta do compositor, Stella. “Começamos agora para brigar um pouco por espaço e verbas”, explica Dori. Entre os projetos, está o lançamento das partituras do pai e um concerto com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), para revisitar o disco ‘História de Pescadores’, compilação lançada em 1996, que reunia, como uma ópera, canções sobre a tragédia dos pescadores baianos.

Para shows, Dori guarda planos para “dois baianos e um carioca” (Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque) e outro, para conterrâneos, provisoriamente chamado de “Bahia canta Caymmi”. Dori explica: “Eu quero procurar todos os artistas baianos para cantar as músicas. Jussara Silveira, Daniela Mercury, Ivete Sangalo”. O músico deixa claro que não fará concessões e nem apresentará clássicos com novas roupagens. “Tenho horror a isso. Quero um Caymmi real, com o pé no chão, sem nada novo para introduzir. Não me venha com funk”, alerta.

Nana guarda uma vontade de abrir uma “casa” com os objetos de Dorival. “Tem tantos livros, bengalas. São tantas coisas. Mas o PT não cuida muito da cultura nesse país”, reclama. O projeto ainda está no papel.

Os irmãos já se apresentaram com o repertório do disco em São Paulo e viram os ingressos evaporar em minutos. “Quando a Nana está junto é uma m****. Esgota rápido”, brinca Dori. A irmã promete: voltará com o show em breve.

O UOL entrevistou Danilo, Dori e Nana sobre o lançamento do disco "Caymmi", mas a conversa que se inicia sobre o registro vira, inevitavelmente, uma conversa sobre lembranças. É como se o disco fosse como a Madeleine do escritor Marcel Proust, que traz a epifania e convoca o passado. Aberto o baú de memórias, até Dorival, que é chamado de papai no começo da entrevista, vira “o velho” no final.

Produtor e arranjador do disco, Dori, o mais velho, começou o projeto conversando com os irmãos por Skype (ele mora em Los Angeles; Danilo e Nana, no Rio). Ao mesmo tempo, garimpava histórias pouco conhecidas do imenso cancioneiro do pai para o segundo trabalho coletivo (o primeiro disco foi lançado em 2004, quando Dorival ainda era vivo, em comemoração de seus 90 anos).

"Consultei o livro ‘Cancioneiro da Bahia’ [editado por Dorival na década de 1940]. Parti desse princípio, de canções não muito conhecidas. Depois, cada um dos irmãos fez sugestões", conta. “Eu não deixei ninguém mexer [no disco], é algo pessoal. O mundo está muito Lady Gaga, né? Eu tenho muito respeito, não por ser meu pai, mas pela obra que ele deixou”, explica.

No disco, as canções se apresentam sóbrias, mas com reverência e arranjos delicados. São sambas do recôncavo (“Quando eu durmo/Balaio Grande”), cantigas praieiras (“Sereia”), parcerias com o escritor Jorge Amado (“Modinha para Tereza Batista”) e outras músicas que surpreenderam os filhos. “Eu ouvi ‘Sereia’ e ‘Itapoã’ no estúdio. Falei: ‘que coisa bonita’”, conta Danilo. “Lembrava de papai cantarolando-as quando éramos criança, mas não sabia o desenvolvimento melódico delas. Tinha elas em uma memória muito longe”.

Processo doloroso
Nana teve o mesmo impacto ao ouvir “Acaçá” e “História pro Sinhôzinho”. “Nunca me vi cantando essas músicas. Era papai que cantarolava. Com “Acaçá” eu viajei muito nessa Bahia velha. As baianas iam para rua vender amendoim, os acaçás, as vozes ecoavam. Hoje só se ouve carros”, relembra.

Apontada como uma das maiores vozes do país, Nana não esconde sua tristeza. O processo de produção do disco foi sofrido para Dori e Danilo, mas eles concordam: para Nana foi pior.

“Lembro da minha infância, e essa é minha revolta em cantar. É uma carnificina, vejo minha casa, meu pai, minha mãe. É um mar de recordações vivas e diárias. Tudo lembra eles dois. Antes eu entrava no palco e era uma esculhambação. Estou cantando como sempre cantei, mas canto mais com a perda”, desabafa Nana.

A cantora, como já é conhecida de sua personalidade, busca um alívio cômico ao próprio depoimento. “Ontem mesmo, estava em lágrimas. Se eu ganhar uma medalha de ouro que nem o [nadador César] Cielo, eu não vou aguentar. Subo junto com a bandeira”, ri.

É com esse sentimento que Nana transformou “Francisca Santos das Flores” em fado, entoada com sotaque lusitano no disco. “Era para fazer apenas uma base e cantei assim. Baixou um santo, algum ancestral”, conta. “Estou perdida, a [Maria] Bethânia já ouviu e quer que eu ressuscite os fados da [cantora portuguesa] Amália Rodrigues”. Projeto novo mesmo, ela avisa, apenas se for em homenagem ao pai. Sua vontade é única: se aposentar.

“Faz tempo que eu não gravo. As gravadoras não estão a fim, eles querem um projeto fechado ou que se danem. Eu preciso sair dessas coisas que envolvem o trabalho para lidar com o centenário do pai. É isso que importa”, explica.

  • Capa de "Caymmi"

Autorretrato
“Caymmi”, o disco, também expõe outra paixão de Dorival: a pintura. “Ele chegou a ficar na dúvida se seria cantor ou pintor”, comenta Danilo. O autorretrato que estampa a capa do álbum estava na casa de Danilo. “As pinturas estão distribuídas nas casas dos filhos, na casa dele. O velho adorava pintar”, conta Dori.

No próprio CD, um desenho de Iemanjá, orixá que encantava Dorival, que por pouco ficou de fora do projeto. “O Dori produziu e eu entrei na parte mística. Dizia ao Dori: ‘põe iemanjá’. E o Dori é mais cético, né?”, Danilo se diverte.

“Iemanjá é um orixá muito delicado, você ouve no candomblé o pessoal fazendo comidas para oferecer e ela, se não gostar, rejeita. Tem que fazer tudo de novo”. Um disco com canções como “Sereia” e “Rainha do Mar” sem a imagem e correndo o risco de ser “renegado”? “Seria imperdoável”, diz Danilo.