Produtor musical de novela passa 6 meses em busca de novidades para trilhas
O primeiro beijo entre William e Lili em "Além do Horizonte", da TV Globo, personagens de Thiago Rodrigues e Juliana Paiva, aconteceu no 6° capítulo da novela, durou menos de 1 minuto e foi embalado, logo de cara, por versos como "Minha alma sabe que viver é se entregar". A voz de Hélio Flanders, da banda mato-grossense Vanguart, estreou no horário nobre. Nos dias seguintes, o grupo, até então considerado alternativo, viu surgir vídeos da canção "Meu Sol" com o título de "tema de William e Lili".
"Eu vejo o casalzinho da novela e falo: 'C******! É minha voz ali embalando'", comemora Hélio, compositor da música-tema (ao lado do baixista Reginaldo Lincoln), ao UOL. "Os fãs sempre filmam [a cena] e mandam pelo YouTube. Me deixa emocionado. A gente nem pensava nisso, mas eles só nos comunicaram que estavam procurando canções e que gostaram dessa música, acharam que tinham a ver".
Mesmo com ofertas, Félix fica sem tema
Acostumado a acompanhar a novela que ajuda a criar --afinal, faz parte do trabalho ficar de olho no andamento da novela-- Iuri Cunha, produtor musical de "Amor à Vida", conta que às vezes é necessária uma ajuda extra para compor a trilha. Ele explica contando a história da personagem Perséfone, de Fabiana Karla.
"Ela é gorda, era virgem e rejeitada. A história dela é de alguém que quer se apaixonar. É difícil achar uma música para ela. Chega uma hora que não tem mais tempo, falta 15 ou 20 dias para a estreia e a gente recorre aos artistas. No caso dessa personagem, fomos buscar algo mais popular". Foi assim que "Fofinha Delícia", do Sorriso Maroto, da Som Livre, entrou no repertório.
Algumas gravadoras chegam a oferecer artistas e canções de seu catálogo para compor as trilhas. Foi a partir de uma oferta --e uma recusa-- que Paloma (Paolla Oliveira) e Bruno (Malvino Salvador) "ouvem" Bruno Mars enquanto se beijam."Era para ser 'Oh Baby Baby', do Seal. Uma música fantástica, com clima de Motown. A gente pediu a liberação, mas não conseguimos de nenhuma forma. Veio então uma dessas felizes coincidências com o Bruno Mars".
É bom lembrar que Paloma tem mais dois temas na novela: um ("Um Ser Amor", de Paula Fernandes)para acompanhar seus momentos sozinha e outro ("Un Vestido y Un Amor", com Caetano Veloso) para tocar quando ela se encontra com Ninho (Juliano Cazarré). "E ainda depois tem internacional", avisa Iuri.
No meio de tantas cenas e refrãos, ainda há personagem que nem música tem."O Félix [Mateus Solano] não tem música. Ele fez um sucesso muito rápido. Até procuramos, mas não achamos nada que tivesse as características dele".
Para garantir a sincronia entre a batida perfeita e os dilemas de um personagem, os produtores musicais das novelas passam até seis meses imersos em pesquisas. Pense na atriz Carolina Dieckmann careca em "Laços de Família" (2000) sem que a dramática "Love By Grace", de Lara Fabian, não toque automaticamente na sua cabeça. Ou em Tatá Werneck interpretando Valdirene em "Amor à Vida" sem o hit "Piradinha", de Gabriel Valim.
"Reforçamos o contexto da história, não é uma escolha aleatória", diz Iuri Cunha, produtor musical de "Amor à Vida". "Juntamos um monte de ideias e traçamos um perfil. Se aquela história precisa de uma música animada, então vamos procurar uma cara mais alternativa, ou vamos em busca de algo mais popular", explica o produtor musical Eduardo Queiróz, autor da seleção de "Além do Horizonte".
Iuri e Eduardo recebem o script do folhetim quatro meses antes da estreia e dão o pontapé na pesquisa com cerca 70 músicas. Além do feeling e do gosto pessoal, eles ressaltam a importância dos encontros quase semanais com o diretor de núcleo da novela, o autor do folhetim e o lendário chefão da área musical de toda a emissora, com lastro para bater o martelo por último, Mariozinho Rocha --que não atendeu a reportagem por estar "sempre no estúdio".
Nas reuniões, todo mundo opina, todo mundo sugere. "Às vezes começamos a trabalhar na trilha sem saber quem será a atriz que vai interpretar aquele personagem. No caso do personagem da Tatá [Valdirene], quem ia fazer era a Ingrid Guimarães. Sai um, entra outro, troca a música. A Ingrid jamais faria do mesmo jeito que a Tata. A música precisa ser outra", explica Iuri.
Não é uma equação fácil. Quando a música falha, é necessária uma mudança brusca, como aconteceu em "América" (2005), que teve seu tema principal alterado sem muita explicação. "A abertura era cantada por Milton Nascimento e depois trocaram pela Ivete Sangalo cantando 'Soy Loco Por Ti, America'. Eu lembro que trocaram tudo", diz João Paulo Mendonça, produtor musical da atual temporada de "Malhação". Uma resposta fácil seria a desaprovação do público diante da canção ou uma discordância interna entre autor e produtor. "Mas realmente não tenho a menor ideia do que tenha acontecido", diz ele.
Iuri, no entanto, garante que não precisou se preocupar muito com o fato da canção "Maravida", interpretada por Daniel para abertura de "Amor à Vida", causar irritação em alguns telespectadores. "Sempre vai ter alguém para reclamar, mas eu acho realmente que a música tem tudo a ver com os personagens".
Música independente e alternativa no horário nobre
Dono da trilha da novela das 19h, horário em que a emissora tem flertado com uma geração mais nova de noveleiros, Eduardo Queiróz explica que o público, cada vez mais diversificado, tem ajudado as trilhas a serem modernizadas.
"Nada contra Roberto Carlos, muito pelo contrário", ele se antecipa. "Mas é interessante pegar a geração de 20 anos, que escuta Jake Bugg, Vanguart, Silva [todos eles, artistas na trilha de 'Além do Horizonte']. A gente tenta contemplar esse público, afinal é uma história mais jovem, de aventura. Hoje em dia tudo é mais acessível. Você já ouviu Pullovers? O som deles é muito bom, não é? Por que não usar? Só por que eles não são conhecidos?", questiona, citando a banda paulistana que encerrou as atividades em 2010 sem nunca ter atingido um público mais amplo.
Tradicionalmente um seriado voltado para os jovens, a "Malhação" também precisa de uma trilha afinada com o que se passa nos fones de ouvido do público alvo. João Paulo Mendonça, filho dos atores Mauro Mendonça e Rosamaria Murtinho, se considera antenado, mas não abre mão de uma ajuda familiar. "Eu faço uma seleção e mostro para meu filho de 10 anos. Ele se amarra em Gorillaz, Phoenix e Autoramas", conta, orgulhoso.
A escolha dos paulistanos Holger para a trilha veio do diretor Vinícius Coimbra, mas a inclusão da canção "Afinal de Contas", da curitibana Banda Gentileza, entra na sua cota. "Coisas incríveis acontecem todos os dias na internet. Conheci o pessoal do Gentileza por acaso, mas quando eu ouvi aquele violino do começo já imaginei ela nas cenas".
Nem sempre a trilha vai soar conforme o gosto do produtor. Iuri gosta de Daft Punk --"Get Lucky", uma das músicas que mais tocou em 2013, está em "Amor à Vida", mas não é tema de ninguém, apenas trilha de cenas noturnas e festas--, mas sua trilha também tem Ivete Sangalo. Eduardo Queiróz pode gostar de Pullovers, mas também precisou fazer uma trilha excessivamente popular para "Avenida Brasil" (2012), que tinha Aviões do Forró, MC Koringa e Sorriso Maroto. "O objetivo lá era claro: a parte instrumental, que compomos também, era para ser extremamente séria. E as canções dos artistas, mais popular. A gente queria misturar propositalmente".
Criolo na Globo
Não dá para deixar de lado que o objetivo é que aquelas canções se tornem assobiáveis e reconhecidas o bastante a ponto do telespectador comprar o CD com a trilha. "As vendas são extremamente flutuantes, depende do sucesso da novela. Tem música que arrebenta na novela e tem novela que empurra a música", observa Iuri.
Valdirene "Piradinha"
Sai um ator, entra outro, troca a música. A Ingrid Guimarães jamais faria do mesmo jeito que a Tatá. A música precisa ser outra
E há artista que não autoriza seu trabalho ser atrelado a uma novela global. Alguma canção do rapper Criolo embalando uma cena de "Malhação"? Espere sentado. "Eu sei que ele não se interessaria. De vez em quando recebemos um memorando com as canções que não podemos colocar na novela, sob pena de processos", conta João Paulo.
A Gang do Eletro certamente não é um desses artistas. Felizes por saírem do público mais underground que acolheu a mistura de eletro, house e tecnobrega, a banda do Pará goza de exposição em dobro. Tem música em "Chiquititas", no SBT, e em "Além do Horizonte". "Cada vez que viajamos pelo Brasil percebemos que o público está cada vez maior. Muitas pessoas nos ouvem pela primeira vez ali, se identificam com a música e procuram mais sobre a banda", celebra o DJ Waldo Squah. A exposição inédita é o pagamento pelo empréstimo. "Não ganhamos mais nada, só os direitos autorais via Ecad [Escritório Central de Arrecadação e Distribuição] cada vez que a música toca. Mas acho que esse dinheiro aí só cai ano que vem", ri.
Luiz Venâncio, ex-líder do Pullovers --que está na novela das 19h com "O Amor Verdadeiro Não Tem Vista para o Mar"--, analisa a invasão dos independentes na faixa nobre da TV. "Hoje em dia as gravadoras não oferecem mais novidade e praticamente não existem mais. Quando um grande veículo de mídia quer uma novidade que não tenha sido produzida no balaio da cultura de massa, é só pedir para algum moleque mais ou menos antenado em internet dar uma pesquisada no que as pessoas ouvem e comentam de bandas alternativas e pronto, está resolvido".
Eduardo Queiróz, ao ser informado que a banda escolhida por ele já encerrou as atividades, lamenta. "É uma pena, era o momento deles. É a televisão, né? Tem esse poder."
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