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"Inimigo" de Noel Rosa, Wilson Baptista ganha glória em biografia

Aos 42 anos, o cantor e compositor visita seu primeiro endereço no Rio de Janeiro para a revista "O Cruzeiro" - Arquivo O Cruzeiro/Divulgação
Aos 42 anos, o cantor e compositor visita seu primeiro endereço no Rio de Janeiro para a revista "O Cruzeiro" Imagem: Arquivo O Cruzeiro/Divulgação

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

06/02/2014 15h29

É possível um compositor de mão cheia, com mais de 500 sambas no currículo, morrer esquecido? Na prática, foi o que aconteceu com Wilson Baptista. Autor de canções como "Meu Mundo é Hoje" e "Acertei no Milhar", o fluminense de Campos dos Goytacazes, norte do Rio de Janeiro, foi o exemplo nato do malandro carioca. Morreu em 1968, como vilão, pobre, esquecido e amargurado. Já na teoria, nada como o tempo para colocar sua grandeza no lugar certo.

No centenário de nascimento (completado em 2013), ele finalmente ganha uma biografia definitiva, "Wilson Baptista - O Samba Foi Sua Glória", de Rodrigo Alzuguir, lançado em janeiro pela editora Casa da Palavra. "É a história de um cara que era um segredo. Com uma obra vasta e original, ele precisava figurar entre os grandes”, explica o autor.

Alzuguir conhece a alma de Wilson. Interpretou o sambista em um espetáculo teatral (ouça a trilha na Rádio UOL) e foi a fundo na pesquisa, amparado pelos únicos filhos vivos do compositor, que morreram antes do livro ser publicado.

Com uma rica descrição da boêmia na região da Lapa dos anos 30, o escritor narra a saga do menino, filho de pais humildes, que fora ao Rio com o sonho de se tornar sapateador no teatro de revista, mas acabou virando um dos maiores compositores da nossa história -- embora muitas de suas canções não sejam reconhecidas como suas. Até então, Wilson era citado em livros e memórias como o homem que brigou com Noel Rosa.

Briga de rimas
O embate não se deu com braço, mas sim com rima e métrica. Noel já era um compositor reconhecido e teria ficado irritado ao saber que um novato estava de olho na mesma dançarina do cabaré Apollo, na Lapa, e ainda se vangloriava do estilo malandro, de “chapéu do lado, tamanco arrastando, lenço no pescoço, navalha no bolso, eu passo gingando, provoco e desafio, eu tenho orgulho em ser tão vadio”. O atrevido era  Wilson e a canção, “Lenço no Pescoço”. Noel pegou no lápis e mandou: “Malandro é palavra derrotista, que só serve para tirar todo o valor do sambista”, cantou em “Rapaz Folgado”. A tréplica de Wilson veio em “Mocinho da Vila”, “Conversa Fiada”. Noel respondeu com “Feitiço da Vila” e “Palpite Infeliz”.

Quem deu o nocaute foi o malandro de lenço no pescoço. “Entre os feios estás na primeira fila, eu te batizo ‘Fantasma da Vila’”, cantou Wilson em “Frankenstein da Vila”, fazendo troça do defeito no queixo característico de Noel.


"Ele tinha aquele pensamento subversivo, aquela audácia. Ele gastava tudo, era muito hedonista, mas foi o compositor mais fértil de sua geração"

Rodrigo Alzuguir, autor de "Wilson Baptista - O Samba Foi Sua Glória!"

A história é deliciosa, mas o autor trata de desfazer a fama. "Eles terminaram parceiros”, afirma. Na década de 50, as canções seriam lembradas no disco “Polêmica”, dando ainda mais crédito à lenda. “O erro principal do disco foi não ter uma música que selasse a parceria. O Noel refez a letra de 'Terra de Cego', do Wilson, que viria a ser ‘Deixa de ser convencida’. Era o recado dos dois para aquela morena do cabaré. Combinaram de fazer mais músicas, mas o Wilson viajou, e Noel morreu em 37”. Bem mais tarde, Wilson apareceria como o malandro, com certa maldade, na cinebiografia do então "inimigo", "Noel - O Poeta da Vila", de 2006.

"Ídolo" de Getúlio Vargas e Nat King Cole
Wilson acabaria tendo mais fama anos depois de toda essa história, em 1940, quando alcançou repercussão e sucesso com duas músicas, “Ó Seu Oscar” e “Bonde São Januário”, inscritas no primeiro concurso de música popular promovido pelo DIP -- aquele mesmo instrumento de censura e propaganda do Estado Novo. As letras deixavam de lado a ginga de quem levava navalha no bolso para fazer uma ode ao povo trabalhador -- uma dos discursos preferidos do governo Getúlio Vargas.

Para o compositor, era dinheiro no bolso e mais duas mostras de seu vasto cancioneiro, que guardava pérolas de sua relação com as mulheres. Escreveu versos que seriam hoje facilmente considerados machistas (em “Emília”: “Quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar / Que de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar”), mas também defendeu a mulher independente (em “Lealdade”, regravada anos depois por Caetano Veloso: “Serei, serei leal contigo / Quando eu cansar dos teus beijos, te digo / E tu também liberdade terás”).

O gosto pela música veio da convivência com um tio que tocava na banda "Lira de Apolo", em Campos, mas ele mesmo não desenvolveu habilidade com os instrumentos. No entanto a melodia saia como dava, do assovio ao batuque dos dedos em uma caixa de fósforos.

“Se você for ver, ele tem mais de 500 músicas gravadas. Encontrei mais de 100 inéditas. Se for levar em consideração as que ele vendia, o número sobe. Foi o compositor mais fértil de sua geração”, conta o autor.

Por conta da intensa produção, Wilson vendia muito de suas músicas. “Ele tinha a urgência da fome. Ele nunca se preocupou em deixar um dinheiro, de construir um nome”, comenta Alzuguir. Existe inclusive a possibilidade de Nat King Cole ter cantado seus versos em “Un soir de carnaval”, versão francesa de “Não Tenho Lágrimas”. 

  • Divulgação

    Magro, abatido e quase irreconhecível, Wilson posa para uma de suas últimas fotos

A canção não é creditada à Baptista. Ele teria começado a escrever os versos com Max Bulhões, mas após uma viagem, entrou outro parceiro em seu lugar. “Wilson batalhou a vida inteira para se mostrar como compositor dessa música. E ele não tinha isso, quando ele vendia a canção, ele esquecia que tinha escrito. Max ofereceu um valor como sinal de indenização, com a promessa da retificação no crédito. Mas isso nunca aconteceu”.

“Ele tinha aquele pensamento subversivo, aquela audácia que herdou dos avós abolicionistas. Ele gastava tudo, era muito hedonista". E ai daquele que criticasse essa vida a deus dará. A resposta era simples, como na letra de “Meu Mundo é Hoje”, canção que virou fixa no repertório de Paulinho da Viola: “Meu mundo é hoje, não existe amanhã pra mim / Eu sou assim, assim morrerei um dia / Não levarei arrependimentos nem o peso da hipocrisia".