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Arcade Fire canta em português e fecha Lollapalooza com Carnaval epifânico

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

06/04/2014 20h38

Se em 2005, quando veio ao Brasil pela primeira vez, o Arcade Fire havia rezado sua missa indie, com coros em uníssono e melodias grandiosas, os canadenses agora focam sua devoção e espiritualidade musical para a dança e energia pagã do Carnaval.  É a melhor e mais ousada fase do grupo.

A banda subiu ao palco principal do Lollapalooza, no Autódromo de Interlagos de São Paulo, fechando neste domingo (6) a edição 2014 do festival e competindo com o público dos veteranos do New Order, que tocaram ao mesmo tempo em outro palco --o público, menor do que em outros shows concorridos, se dividiu por igual no fim.

Embebidos em referências eletrônicas, música caribenha e no carnaval do Haiti, o Arcade Fire volta ao Brasil renovado, com uma insanidade que beira o exagero e o cafona. Tudo faz parte do universo de "Reflektor", novo disco do grupo que dá a cara da atual turnê, com figurinos exóticos, percussão e um indivíduo vestido como um globo de luz. Seria uma divindade vindo da era da discoteca? A epifania, para os canadenses, vem através da dança. 

Caetano e Orfeu

São muitas as leituras e referências no show do Arcade Fire. No set, reservaram um agrado especial aos brasileiros: antes da ótima "Reflektor" (que já deixou até mesmo David Bowie siderado), apareceram no telão cenas do filme "Orfeu Negro", do diretor francês Marcel Camus, inspirado na obra de Vinicius de Moraes.

Com o novo disco, Arcade Fire versa sobre o duplo, seja no reflexo do espelho, que se reconhece a alma gêmea e a mitologia grega de Orfeu e Eurídice em "It's Never Over" e "Afterlife"; ou da persona que se projeta através da fama e da exposição, como em "Normal Person"; e os "bubble heads", uma banda falsa vestida com enormes cabeças de látex, que no Lollapalooza tocou um trecho de "Aquarela do Brasil".

Animado, o vocalista Win Butler desceu para o público, pulou e apresentou canções em português. "Esta canção é sobre saudade", disse antes de apresentar "The Suburbs". "Here Comes the Night Time", a mais festiva e síntese da inspiração carnavalesca, veio com chuvas de papel e uma introdução de "Nine Out of Ten", de Caetano Veloso, em sua fase londrina. No final, prometeu: Se o Brasil ganhar a Copa, fará o próximo show no país vestido com as cores da Seleção.

Régine Chassagne, mulher de Butler, até desafina em alguns momentos, mas seu carisma é absoluto, como provou em "Haiti" e na oitentista "Spraw 2", do penúltimo álbum "The Suburbs" e que já direcionava qual seria a próxima fase do grupo. Veio de Régine o agrado mais bonito ao Brasil, quando cantou com sorriso no rosto "O Morro Não Tem Vez", imortalizado nas vozes de Elis Regina e Jair Rodrigues.

O repertório brindou o público fiel com canções de outras fases, como a trilogia "Neighborhood": "Tunnels", "Laika" (incluída no setlist a pedido dos fãs brasileiros) e "Power Out", e "Wake Up", do disco "Funeral" (2004). Esta última, cantada com louvor pelos fãs já no final do show, deu ao Arcade Fire a pecha de banda ritualesca. São, na verdade, boas canções que a cada dia se mostram mais populares e fiéis às agruras de uma geração. 

Segundo dia com veteranos

O segundo dia do Lollapalooza 2014 trouxe mais veteranos aos palcos do que o dia anterior, dominado por atrações com forte apelo do público jovem. O perfil dos artistas escalados para este domingo refletiu diretamente na plateia: viu-se um Autódromo um pouco mais vazio (mas não menos desconfortável para se locomover) e pessoas mais velhas do que havia no sábado. Foram seis nomes com raízes dos anos 90 contra três no primeiro dia.

Com a baixa procura e sem o esgotamento das entradas, cambistas nos arredores do Autódromo cobravam um ingresso entre R$ 200 e R$ 300, enquanto na bilheteria a entrada custava R$ 290 (inteira).

A grande surpresa do domingo para os veteranos foi o encontro improvável de metade dos Smiths, com Johnny Marr e Andy Rourke dividindo o mesmo palco. O show era do guitarrista, que convidou o ex-baixista da banda para tocar a clássica "How Soon is Now?", levando os fãs à histeria. Marr e dominou praticamente os solos e riffs das canções, mostrando que a fratura na mão, semanas antes das apresentações na América do Sul, não prejudicou na virtuose.

O Pixies, lenda do rock alternativo, também veio ao país com uma surpresa, mas anunciada. Os fãs brasileiros viram ao vivo, pela primeira vez, a nova baixista da banda após a saída da queridinha Kim Deal. Com desenvoltura de uma veterana, a argentina Paz Lenchantin acompanhou o Pixies com louvor, principalmente em canções novas. A banda de Black Francis trouxe clássicos como "Here Comes Your Man", "Monkey Gone to Heaven", "La la Love You", "Hey" e "Gouge Away".

Prata da casa, o Raimundos se apresentou cedo (13h30) no Lollapalooza, mas com um público significativo para o horário. Em homenagem a Ayrton Senna (uma lembrança por estar no Autódromo), a banda tocou "Esporrei na Manivela", dizendo que o piloto "esporrava na parada e passava na frente de todo mundo na raça". Comandado por Digão, o Raimundos alternou músicas novas com a nostalgia de um passado áureo tão respeitado pelo público de rock nacional, enrijecido principalmente pelos álbuns "Raimundos" (1994), "Lavô Tá Novo" (1995) e "Só no Forévis" (1999).

Exageros da casa nova
O primeiro dia do Lollapalooza foi marcado pela surpresa da casa nova: depois de dois anos instalado no Jockey Club de São Paulo, o festival foi parar no Autódromo de Interlagos, a cerca de 18km distante do antigo local. Bem mais amplo e com mais atrações, o festival agradou pelo clima, mas recebeu críticas pela distância entre um palco e outro, separados por até 900 metros, e pela aglomeração, com difíceis acessos para se locomover pelas dependências do local.

A mudança do Jockey Club de São Paulo para Interlagos tirou do público a opção de fazer bom proveito do ingresso comprado, podendo assistir a diversos shows. Apostou-se no tamanho e chegou-se ao exagero.

O primeiro dia de shows recebeu atrações que fazem sucesso com o público jovem, como o Muse, que ficou por conta de encerrar a noite, depois de ter cancelado na última quinta-feira o show que faria em uma pré-festa do festival por causa de problemas na garganta do vocalista Matthew Bellamy. A banda subiu ao palco do evento --que recebeu 80 mil pessoas-- e o líder mostrou que estava com a voz praticamente intacta.

O Imagine Dragons, novatos recebidos como grande atração, veio pela primeira vez no país e chegou com jogo ganho, embalado principalmente pelo mega hit "Radioactive". Fenômeno pop atual, a cantora neozelandesa Lorde também arrastou uma multidão para sua primeira apresentação no Brasil e promoveu um transe coletivo.

Banda mais veterana do dia, o Nine Inch Nails quebrou a linha pop rock ensolarada que embalou toda a tarde, antes de Trent Reznor assumir o microfone. Entre os poucos brasileiros na programação, o Nação Zumbi tocou para 1/3 do público de Lorde, que se apresentou antes, mas totalmente revigorado após férias dos palcos.