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Parte mais suculenta de livro sobre Circo Voador está no veneno

Arnaldo Branco*

Especial para o UOL, no Rio

10/04/2014 05h05

"Circo Voador - A Nave", da produtora cultural carioca Maria Juçá, é menos um relato biográfico do que um inventário de um trabalho bem feito. Não há uma preocupação muito rigorosa com a ordem cronológica ou com apuração dos fatos, é mais um testemunho (bastante) pessoal da trajetória dessa mistura de casa de espetáculos, oficina de criação artística e núcleo de assistência social - por uma das poucas pessoas que estiveram lá (coordenando ou acompanhando de perto) desde quando o projeto começou (1982), em uma precária lona na praia do Arpoador, antes de migrar para seu pouso definitivo na Lapa. É também um pretexto para frequentadores (como eu) puxarem velhas memórias de idas ao Circo. 

Além de falar do lugar como a catapulta de carreiras que se tornou (Lobão, Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, O Rappa, Planet Hemp) e espaço de resistência para artistas negligenciados pelas rádios (Jards Macalé, Tom Zé, Black Future, Rogério Skylab), "A Nave" é bastante didático quando discorre sobre o quanto é complicado tentar tocar um negócio na área cultural - principalmente no Rio, a capital brasileira do calote.

Destaque para a disposição da autora para manter o Circo funcionando, retomá-lo depois de seu fechamento indevido (motivo: o ex-prefeito Luiz Paulo Conde ficou magoado com uma vaia que levou lá) e, em seguida, para se esquivar do fogo amigo de quem tentou roubar a marca que era dela por direito e usucapião. Juçá até que tenta botar alguns panos quentes, mas você sai da leitura querendo dar na cara de seu antigo parceiro de empreitada, Perfeito Fortuna.

Sobram adjetivos para os músicos que adotaram a lona do Circo ("genial", "iluminado", "transcendente") em alguns trechos que mais parecem press-releases, mas a parte suculenta do livro está no veneno: a relação da casa mais imprevisível do show business com uma das maiores prima-donas da categoria, Lulu Santos; nas histórias de consumo de drogas, álcool e genitálias por praticamente toda a classe artística brasileira e nos relatos bem distribuídos de Alexandre Rossi, o faz-tudo Rolinha, que usa com músicos, empresários e bicões todas as palavras desabonadoras que Juçá (às vezes) evita. Impossível não rir com a história do evento educativo sobre métodos contraceptivos protagonizado por dois atores vestidos de órgãos sexuais.


Eu e o Circo
Lembro do Circo Voador como um pequeno milagre do empreendedorismo carioca - aquele que explora uma boa ideia durante alguns meses até o primeiro sinal de desgaste da marca. Aquelas arquibancadas (dormi muito lá) testemunharam noites vazias e pequenos desastres (João Gordo tocando com um pedaço de pau enfiado no cofrinho pra dar na cabeça dos carecas que tentavam subir no palco, Zé do Caixão quase linchado por sacrificar uma galinha, "moshes" mal sucedidos, músicos furões, desfalques na bilheteria), mas o Circo seguiu firme.

O lugar virou um abrigo para todo mundo que tinha uma relação mais estreita com a música do que a de caras que faziam uma ou outra visita esporádica ao Canecão. Um amigo ostentava o orgulho de ter visto todos os shows do Flávio Venturini lá - realmente uma marca impressionante levando em conta a assiduidade do mineiro (e o potencial soporífero do trabalho do sujeito). Venturini só perdia (em números de escalação) para o Celso Blues Boy. "Show do Celso" era uma instituição carioca - que muitos curtiam de graça, porque boa parte do público pulava a grade para não ter de pagar ingresso.

A prática era tão rotineira que virou esporte: certa vez um conhecido, vocalista de banda de hardcore, pulou o muro em um dia que podia entrar de graça porque ia tocar lá - e o cara ainda por cima despencou lá do alto, rasgando o braço de bobeira. Os campeões da modalidade (antes da fama): Marcelo D2 e Marcelo Yuka, que fez questão de ser içado por cima da grade da primeira vez que voltou ao Circo de cadeira de rodas.

O Circo Voador sempre foi famoso por abrigar shows antológicos - eu é que tinha a manha de perder todos. Devo ter visto todas as apresentações dos Chatos & Chatolins (nada contra) mas não fui no show do Franz Ferdinand em 2006 (descrito com emoção por Rolinha), nunca vi os Raimundos lá e perdi o primeiro show de Chico Science & Nação Zumbi no Rio apesar de estar no recinto: achei o som daquela banda meio embolado e preferi tomar cerveja. Agora, pergunta se perdi o enésimo show dos Suínos Tesudos. 

Qualquer estabelecimento carioca costuma ficar descaracterizado depois que passa por uma reforma, mas a estrutura erguida em 2004 não só preservou o élan do Circo como melhorou as instalações para receber um número crescente de atrações internacionais (principalmente depois da criação do projeto de crowdfunding Queremos), como The National,  Broken Social Scene e Primal Scream (estava tão perto do palco que o Bobbie Gilespie pisou na minha mão). Lulu Santos não tem mais do que reclamar.

* Arnaldo Branco, 41, é cartunista, jornalista e um "bairrista desnaturado". Publica nas revistas "Tarja Preta", nos blog Mau Humor e O Brasil Tá Vendo, do UOL, e no portal G1. Em 2013, dirigiu e escreveu a série da MTV "Overdose".