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Craques da música brasileira recriam obra-prima censurada de Taiguara

Rafael Andrade/Folhapress
Imagem: Rafael Andrade/Folhapress

Irineu Machado

Do UOL, em São Paulo

30/05/2014 14h29

Uma seleção de craques de uma geração em que a música do Brasil jogava "futebol arte", reforçada com promessas de uma geração mais recente, recria em São Paulo o histórico e polêmico álbum "Imyra , Tayra, Ipy", de Taiguara (1945-1996). Serão duas apresentações: nesta sexta-feira (30) e  no sábado (31), no Sesc Belenzinho.

Pérola da MPB, o disco tornou-se lendário por ter sido censurado e recolhido das lojas pela ditadura militar dois dias depois de seu lançamento, em 1976. O álbum atravessou décadas à espera de um relançamento, o que só veio a ocorrer em outubro do ano passado, pela gravadora Kuarup.

Wagner Tiso (direção musical e piano), Toninho Horta (violão e guitarra), Jaques Morelenbaum (cello), Nivaldo Ornelas (sax e flauta), Novelli (baixo), Zé Eduardo Nazário (bateria e percussão) --todos integrantes do grupo reunido para fazer a obra por Taiguara, "campeão" de músicas censuradas pelo regime militar, ao retornar pela primeira vez do auto-exílio em Londres-- ganham participação do acordeonista Toninho Ferragutti e dos cantores Bruno Morais e Joana Duah. Dos craques que compuseram o time da gravação original, só faltou Hermeto Pascoal.

Em entrevista ao UOL, Wagner Tiso contou detalhes sobre a criação da obra, falou sobre como a personalidade de Taiguara influenciou na qualidade do disco e comparou o cenário musical do Brasil da ditadura com o mercado atual. 

UOL - Este será, afinal, aquele show de lançamento do disco que nunca aconteceu? Um espetáculo marcado em maio de 1976, nas ruínas de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, que foi cancelado na véspera, logo depois que a censura ordenou o recolhimento do disco.
Wagner Tiso - É, mas falta o Taiguara. O ideal seria que ele estivesse conosco, mas estamos fazendo tudo com muito carinho, com muito gosto... Foi um momento muito bom da nossa história. Ele chegou com muito boas ideias do exterior, com muita ideia política, com muita ideia musical. O Taiguara era uma grande figura do meio musical brasileiro. Era uma pessoa interessada na vida cultural e política do país. 

Como você embarcou nesse projeto, à época?
Quando o Taiguara chegou no Brasil, voltando de Londres, ele me procurou. Sempre fomos muito amigos. A gente saía à noite pelas ruas, íamos tomar cerveja, conversar, eu ia muito na casa dele. Já tínhamos trabalhado juntos. No Som Imaginário (grupo de Wagner Tiso, com Robertinho Silva, Tavito, Luiz Alves, Laudir de Oliveira, Zé Rodrix e Nivaldo Ornellas), participamos de algumas faixas de um disco anterior do Taiguara ("Viagem", de 1970). Ele queria contar comigo para a produção do disco e para a regência da orquestra. Então eu fui pra casa dele, a gente lá mexeu nas harmonias, ele me mostrava coisas, fomos conversando, quando as ideias dele fecharam mesmo, a gente convidou o Hermeto para ele ser o orquestrador. Ele tinha esse sonho de fazer alguma coisa com a orquestração do Hermeto. E foi o que aconteceu. As bases, as harmonias, já estava tudo feito, aí o Hermeto escreveu os arranjos, colocou a orquestra, eu regi, e assim ficou. Foi um disco histórico, até pelo momento do país.

Tantas vezes perseguido pela censura por causa de suas composições, já antes desse disco, você sentia nele a intenção de fazer um trabalho provocativo, de cutucar o regime militar? Ele conversava sobre isso?
É como ele era mesmo. Ele era um inconformado com a ditadura militar, ele era um adepto do Luís Carlos Prestes, era comunista de carteirinha mesmo, sem esconder nada, sempre se declarou mesmo comunista. E ele queria fazer um disco. O que me surpreendeu mesmo foi a qualidade do piano. Ele estudou um pouco lá fora, estudou orquestração, e ele estava tocando piano muito bem e orquestrando também junto com o Hermeto. Mas ele não tinha ideia de provocar, não. Ele era aquilo mesmo. Ele estava cansado de fazer música comercial, música para sucesso, essas coisas. Ele queria fazer um disco como ele era, inteiro, como músico, como pianista, como um ser político.

Diz a lenda que as gravações foram tensas, devido ao grau de exigência de personalidades como Taiguara e Hermeto. Foi assim mesmo?
Não pelo Hermeto, mas o Taiguara sim, ele tinha um grau de exigência muito grande, ele tinha um negócio perfeccionista, sempre teve, de já estar tudo pronto e ele querer mudar. Muda aqui, muda ali, rescreeve isso, faz outra vez, chama a orquestra.. Isso começou a contrariar um pouco as pessoas que estavam participando, inclusive a própria gravadora. O disco foi feito, enfim, o que ele não quis abrir mão foi feito... Eu mesmo brigava com o Taiguara o tempo todo. Durante a gravação, fui várias vezes embora. No dia seguinte, ele me ligava: “Pô, Wagner, volta, precisamos de você para continuar...”. O trabalho de gravação foi um longo processo. Levou uns seis meses, por aí. Hoje, isso é impensável! O Beto Guedes, por exemplo, ficava quase um ano gravando o disco dele. Isso não existe mais, acabou, já era.

E como tem sido esse reencontro dos músicos que participaram daquele momento tanto tempo depois?
Está todo mundo emocionado, reunidos, tocar aquele repertório. É um tempo enorme, muita história. O Jaques Morelenbaun, por exemplo, aquela foi a primeira vez na vida dele que ele gravou um disco. Ele lembra do disco com muito orgulho. Está todo mundo muito motivado para tocar aquele repertório, um grande prazer pra todos nós. O Toninho Horta, nos conhecemos desde moleques, o Nivaldo Ornelas, o Jaquinho, estamos sempre por aí, nos cruzando em projetos diferentes. O Novelli, fazia bastante tempo que não via, ele não para de contar coisas de episódios que convivemos, se lembra o tempo todo!

Antes de "Imyra", você esteve envolvido na produção e arranjos de outro disco que também tinha um caráter experimental e também foi alvo da censura: o "Milagre dos Peixes" [Milton Nascimento, 1973]. Como você compara esses dois trabalhos?
A diferença é que o disco do Taiguara foi vetado por inteiro. Já o "Milagre dos Peixes", foram vetados o Milton e os letristas dele. Então, fizemos o disco no estúdio sem letra, só com três músicas cantadas. A grande experiência foi que depois nós conseguimos liberar o repertório de músicas para fazer ao vivo aqui em São Paulo, com orquestra sinfônica que veio do Rio. Foi também um grande momento. Eu fiz os arranjos todos, o Paulo Moura regeu e eu toquei piano e órgão.

A censura fez mal à música brasileira?
O movimento cresceu na revolta de não serem liberadas as coisas, os músicos usaram o máximo de criatividade para burlar a censura. O Taiguara por exemplo, as letras desse disco, em princípio são poéticas e românticas, mas têm outra conotação. "Sonhada terra das palmeiras, onde andará teu sabiá?" Parecia romântico, mas não era. Chico Buarque também usou muito a criatividade para burlar a censura, vários outros, foi muita gente censurada. Isso fez uma geração ficar unida, uma geração de grandes compositores em prol de falar com o povo brasileiro de uma maneira que passasse pela censura.

Em um artigo publicado aqui no UOL nesta semana, Toquinho escreveu que a qualidade musical da safra dos anos 60 e 70 dificilmente será repetida. Você concorda?  
Concordo pela situação, pela motivação, pela união geral. O talento do brasileiro não diminuiu, é igual. Acontece que o mercado é que mudou completamente. Está mais ligado hoje em faturamento. Os grandes artistas jovens têm que entrar na ideia do mercado. Naquela época, quem comandava sua própria carreira era o próprio compositor. Hoje, o compositor tem que estar num nicho de mercado se não fizer o que interessa às gravadoras, rádios, televisões. Só toca o que vende rapidinho. O nível está muito baixo. Nos anos 60 e 70, o artista tomava conta da sua carreira. O Milton Nascimento, na Odeon, demorou uns quatro discos para fazer sucesso. A Odeon investia no talento do artista, não na venda dele. Por isso que é uma geração vitoriosa.

Hoje, como um talento poderia emergir fora desse esquema?
Não creio que se consiga emergir com a mesma força daquela época. O mercado está muito viciado e as pessoas estão fazendo o que o mercado quer. Não é por falta de qualidade dos artistas. É porque o foco é esse. Como o investimento não é direcionado para o talento e sim para o artista pode dar de lucro ao mercado, então dificilmente ele vai conseguir fazer o que aquela geração fez. Repito: não é por falta de talento. Conheço instrumentistas brasileiros jovens com qualidade impressionante, alto nível realmente.

Você falou de uma geração que protestava contra a ditadura e o autoritarismo. O que você acha dos protestos recentes do Brasil? Vocês integrariam o grupo "Não vai ter Copa" ou preferem a turma do "Vai ter Copa, sim"?
Os protestos viraram moda, hoje, um pouco. Naquela época, tinha um movimento nacional contra a ditadura, pelo direito que as pessoas tinham de querer votar. Claro que todo mundo tem direito de reivindicar. Futebol é sempre futebol. Vamos torcer para que a Copa seja um sucesso, vamos gritar "Neymar!". Vou torcer para o Brasil, sempre torci, onde fosse.