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Ratos de Porão prevê apocalipse sendo tuitado no disco "Século Sinistro"

Marco de Castro

Do UOL, em São Paulo

02/06/2014 12h06

Em meio ao caos e a explosões nucleares, uma multidão levanta seus smartphones para registrar o apocalipse e postar as fotos em redes sociais. Esse é o cenário que se vê na ilustração na capa de "Século Sinistro", 15º álbum de estúdio da banda Ratos de Porão, lançado no último final de semana (31 e 1º) em shows no Sesc Pompeia, em São Paulo.

"O mundo está caminhando para isso. É o século sinistro. Tipo aquele livro '1984' [George Orwell], mas em 2014. Todo o mundo é vigiado, todo o mundo é controlado. Não dá nem para conversar mais", explica o vocalista João Gordo, que escreve as letras da banda e teve a ideia para a capa, uma arte em stêncil feita pelo grafiteiro Ricardo Tatoo.

O tema está presente em outras duas músicas do disco. Em "Viciado Digital", o refrão diz: "Viciado digital /Conectado /Em tempo integral /Intimidade escancarada /Numa rede social /Roupa suja mal lavada /No Facebook é de doer /Tuitando suicídio /No Instagram foto vai ter". E, na faixa-título, Gordo anuncia um futuro sombrio, mas com todos conectados: "A morte iminente /Com fome, sem água, sem casa /Na vala /Com internet ilimitada".

“Casamento tem que ter filho”

Há oito anos sem lançar um álbum --desde "Homem Inimigo do Homem" (2006)--, o grupo paulistano de crossover (estilo que mistura punk rock, hardcore e thrash metal) retorna aos 33 anos de carreira com o aguardado trabalho. "A gente vinha há oito anos patinando, só tocando música velha", diz Gordo, que conta que o disco foi composto em "três ou quatro meses". Ele compara a banda a um casamento e o álbum, a um filho. "Casamento para dar certo tem que ter filho, né?"

Capa do disco "Século Sinistro" - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

As 13 faixas do trabalho, pesadíssimas e tocadas na velocidade característica da banda, não decepcionam. Em relação aos trabalhos anteriores, uma das principais diferenças de "Século Sinistro" talvez seja a forte influência do heavy metal. "O [baterista] Boka e o [baixista] Juninho chegaram com essa influência do disco novo do Corrosion. Essa coisa meio Black Sabbath", conta Gordo, citando o último disco, autointitulado e lançado em 2012, da banda californiana Corrosion of Conformity. "Mas as músicas que eu e o [guitarrista e fundador da banda] Jão fizemos já não têm isso. A gente é resistente, quer tocar rápido."

Outro diferencial é a qualidade sonora. Gravado em formato analógico no estúdio Family Mob, em São Paulo, o disco traz um som limpo, com todos os instrumentos e vocal marcando presença de forma nítida. "Gravar em analógico é um lance que faz parte do Ratos. Até porque cria uma sonoridade única. Eu, particularmente, saí bem contente da gravação", diz o guitarrista Jão. "A gente é uma banda do século passado e gosta de gravar de um jeito analógico. Não consegue se acostumar com esse som digital, metálico de alumínio, que existe hoje", completa Gordo.

PMs x manifestantes

"Século Sinistro" abre com sons de gritos e explosões dos confrontos entre manifestantes e policiais militares na onda de protestos que marcou o mês de junho de 2013. O áudio do episódio é a introdução da música "Conflito Violento". "Borrachada para todos/ Todo mundo apanha igual/ Criança, velho, aleijado/ Jornalista toma um pau", diz um trecho da letra.

"As grandes corporações da mídia manipulam o povo para acreditar que os manifestantes são vilões e a polícia está agindo certo. Como se fosse normal dar porrada, jogar gás lacrimogêneo e bater em professor e velhinho", opina o vocalista. "O quebra-quebra é uma reação à repressão policial."

"Conflito Violento" é uma das várias músicas que, ao longo da carreira da banda, retratam fatos da história recente do país, como "Plano Furado", de 1989, que aborda o Plano Cruzado, e "Suposicollor", de 1993, sobre o ex-presidente Fernando Collor, que havia sofrido impeachment no ano anterior.  "Acho que estamos poupando muita gente de pesquisar os jornais do período. É só pegar um disco do Ratos e escutar, que você sabe mais ou menos o que estava acontecendo de ruim na época", ironiza o guitarrista Jão.

Contra a Copa

Outro destaque do álbum é a faixa "Grande Bosta", que, segundo João Gordo, é a "música da Copa" do Ratos de Porão. Além de um riff de guitarra poderoso, a música tem um refrão grudento que diz que o Brasil é, sim, campeão: "Em espancamento de mulher", "endividar o Zé Mané" e "fazer filho e dar no pé".

Gordo comenta o que para ele, provavelmente, será o resultado da Copa disputada no país. "O Brasil vai ser campeão, vocês vão ver. Já está tudo combinado", afirma e completa: "Lutamos contra isso. Eu sempre fui contra a Copa do Mundo. A gente torce contra."

O guitarrista Jão concorda: "Brasileiro é bom de bola, de mostrar a bunda e de roubar. Brasileiro tem o dom de fazer coisa ruim, desviar dinheiro. Só quer samba, churrasco, cerveja, bunda, enganar o patrão".

Participações e próximos passos

"Século Sinistro" conta com duas participações especiais. Uma é do guitarrista Moyses Kolesne, do trio gaúcho de death metal Krisiun, que toca os solos nas faixas "Neocanibalismo" e "Progreria of Power", essa última cover da banda sueca de hardcore Anti Cimex. A outra participação é de Atum, porquinho de estimação de João Gordo, que solta urros perturbadores no início de "Sangue e Bunda". No encarte, a banda avisa que não houve crueldade com o animal.

Gordo, que atualmente é vegetariano, conta a história de Atum. "Ganhei esse porco de presente, e ele virou meu bicho de estimação. Ele foi sortudo, porque escapou de virar bacon. Mas logo começou a zoar tudo lá em casa. Acabei mandando ele embora. Hoje está numa fazenda, e é reprodutor".

Sobre Moyses Kolesne e o Krisiun, Jão, que convidou o guitarrista para participar do disco, é só elogios. "Rola um respeito mútuo entre as bandas. São uns caras que a gente curte muito. Não fazem concessão no som deles. E eles também curtem a gente. Sempre falam do Ratos".

Gordo, que participou do último disco do Krisiun, "The Great Execution" (2011), escrevendo a letra e cantando na faixa "Extinção em Massa", afirma que o grupo gaúcho é, atualmente, o maior representante do metal brasileiro no exterior. "Os caras tocam 300 shows por ano e são muito respeitados", diz o vocalista.

30.mai.2014 - Jão e João Gordo, durante coletiva do disco "Século Sinistro" - Fábio Guinalz/Fotoarena - Fábio Guinalz/Fotoarena
30.mai.2014 - Jão e João Gordo, durante coletiva do disco "Século Sinistro"
Imagem: Fábio Guinalz/Fotoarena

Agora, além dos shows para divulgar "Século Sinistro", o Ratos de Porão prepara um DVD da apresentação comemorativa dos 30 anos do primeiro disco da banda, "Crucificados Pelo Sistema", com a formação original da época do álbum, que trazia, além de Gordo no vocal, o guitarrista Jão tocando bateria, o baixista do Ultraje a Rigor, Mingau, tocando guitarra, e Jabá tocando baixo. O vocalista também avisa que a banda aceitou o convite do selo norte-americano Relapse para fazer um split-album (disco dividido entre duas bandas) com o grupo italiano de grindcore Cripple Bastards. "A gente nunca para. O RDP é uma das únicas bandas do Brasil que nunca parou", conclui Gordo.