Com pinos nas costas, Elza Soares relembra Garrincha e teme 7x1 nas urnas
No início deste ano, Elza Soares estava deitada em uma maca a caminho da mesa de cirurgia, após anos sofrendo de dores na coluna e com dificuldades de locomoção. Foi a segunda tentativa cirúrgica de aplacar a fratura causada pela queda de cima de um palco, em 1999, agravada pelo uso do salto 15 e o gingado característico da paciente. Ao cogitar possíveis consequências da operação --perder os movimentos ou a fala, por exemplo-- prometeu a si mesma: "Se eu sair desse hospital, vou atrás do Lupicínio Rodrigues".
O compositor gaúcho, cujo centenário se comemora neste 2014, foi autor do primeiro sucesso da cantora, "Se Acaso Você Chegasse", em 1960. Ele aparece emoldurado ao lado de Elza no palco do novo show dela, "Elza Canta Lupicínio", e norteia o repertório com as canções que popularizaram o termo "dor de cotovelo". Elza entra e sai do espetáculo com passos e movimentos curtos, sempre amparada por um ajudante. No centro do palco, senta-se em uma poltrona e dança nos limites do assento. Não há chororô.
Com oito pinos nas costas, ela mantém a mesma média de 15 shows por mês, que se desdobram em outros dois espetáculos: "A Voz e a Máquina", em que duela com batidas eletrônicas de dois DJs; e a releitura de seu álbum clássico, "A Bossa Negra" (1961). "Me cansa ficar parada", ela diz, contando nos dedos mais um mês de recuperação, enquanto conversa com o UOL em um hotel em São Paulo, horas antes de sua apresentação no Sesc Santana, na zona norte de São Paulo.
No palco, fala do fatídico 7 a 1 que a seleção brasileira levou na semifinal da Copa do Mundo contra a Alemanha: "Parecia que os jogadores estavam com assaduras". Madrinha da Seleção de 1962 e ex-mulher de Mané Garrincha, ela também reclama sobre a torcida brasileira. "Teve muita gente [na Copa], mas o povo que gosta de futebol, o povo de verdade, não participou. Futebol virou elite". E prevê uma goleada, sabe-se lá de quem, nas próximas eleições presidenciais. "O povo mais inocente que tem é o brasileiro."
No quarto de hotel, Elza não usa os enfeites brilhantes e a transparência dos vestidos de gala que traja no palco, mas não dispensa a maquiagem mais leve e os óculos escuros. A pele negra da carioca não mostra as rugas de seus 77 anos, e a cabeleira -- ou peruquinha, como ela chama-- fica entre o cacheado e o black power. A cantora, que em uma de suas primeiras aparições disse que tinha vindo do "planeta fome", também veio do "planeta racismo": "Escrever 'somos todos macacos' é fácil. Mas e dizer: 'Somos todos negros'? Ninguém consegue falar isso".
UOL - Como está o seu problema na coluna?
Elza Soares - Há alguns anos eu levei uma queda no Metropolitan (SP) durante um show. Eu caí do palco, de uma grande altura, e tive um achatamento na coluna. Tive uma fratura que não era preciso operar na época, mas tive que usar um colete para colocar no lugar. Mesmo assim, fiquei com meu bom salto 15, sambando que nem uma louca. Era só usar o colete, né? Até que há uns quatro anos eu comecei a sentir choque no corpo todo. Fiz uma viagem e, quando tentei sair do avião, não dava mais. Foi a primeira vez que usei cadeira de rodas. Cheguei em casa alucinada de dor, operei a cervical e parou o choque. Mas aí começou na lombar.
Quando foi a primeira operação?
Foi em 2012. Comecei a sentir a lombar, a ter choque e dor nos pés. O médico disse que tinha que operar a lombar. Coloquei oito pinos. Mas o mais triste foi antes. Ele disse: 'Olha, Elza, você sabe que, com essa operação, você pode ficar muda, perder a voz, pode morrer'. Morrer todo o mundo vai, mas ficar sem voz? 'Então não vou operar'. Mas ele insistiu. Assim que acabou a operação, gritei 'socorro' dentro do hospital. Pensei: 'Bom, estou gritando, então estou ótima'. Descobri que tenho vértebra de criança, então [os pinos nas costas] têm que ser aqueles parafuzinhos. Do cóccix até o pescoço, como o nome do disco [de 2002]. Tenho que ter cuidado, mas um cuidado mais ou menos, né? Não sou muito cuidadosa.
Quanto tempo falta para a recuperação?
A última operação foi em janeiro, já se passaram cinco meses. Disseram que demora seis meses. Estou esperando esse mêsinho. Não dá para sambar, é difícil. Mas também não dá para ficar sentada, que nem dondoca na cadeira, só fazendo caras e bocas, né?
O que você teve que deixar de fazer?
O salto, cara. O salto dói à beça. Tem um pouquinho ainda [mostra o sapato discreto, preto, com um salto do tipo tamanco], mas não dá para notar. Tive que parar de malhar, sempre malhei muito. Eu corria do Leme ao Posto 6 na areia. Sempre tive muito capricho com o corpo. Uma coisa meio masoquista.
Sua maquiagem e suas roupas continuam exatamente iguais. Dá até para ver sua cicatriz.
Dá. Eu quero até que mostre. Acho importante. Tenho uma pele tão boa, que minha cicatriz ficou uma linhazinha só. As roupas lindas, maravilhosas, nunca, jamais [ficarei sem usar]. Meu perfume Dolce & Gabbana, que está acabando... Você merece, e eu mereço tudo isso.
E nos shows, houve alguma proibição?
Não, porque eu fico sentadinha, dou uma tremidinha, faço aquilo no ombro. Na cadeira eu danço. Tenha santa paciência, não aguento.
E você não diminuiu a agenda de shows.
Eu acho que cantar, para mim, ainda é remédio bom. Sem cantar eu não sei viver. É minha alegria. Em casa, eu fico nostálgica. Eu não saio à noite. Não é que eu não goste, mas eu nunca fui boêmia. Não tive esse prazer. Não bebo, não fumo. Não vou atrapalhar quem gosta da noite, né? Senão fica todo o mundo falando alto, e eu: 'Ai, me leva para casa'. Me cansa ficar parada.
Como Lupicínio Rodrigues voltou à sua vida neste momento? É um retorno ao início da carreira?
O Lupicínio me deu meu primeiro sucesso, "Se Acaso Você Chegasse". Ele me deu a chance de criar meus filhos, sair do barraquinho, viver um pouco melhor com um pouco mais de dignidade. Porque você sabe o quanto é difícil uma mulher pobre e negra chegar a esse patamar. Tem que lutar demais. Ganhei do Lupicínio o direito de sair daquela situação. Quando fui operar a coluna, não acreditava muito, estava indo para a mesa de cirurgia pensando: 'Se eu sair desse hospital, vou atrás do Lupicínio. Ele vai me dar mais um sucesso'. Cheguei ao Rio, chamei o maestro Eduardo Neves, e começamos a montar o repertório. Foi quando fiquei um mês ouvindo Jamelão, o maior intérprete do Lupicínio. E chorando, hein? Música, se a gente não começar a cuidar, é que nem o futebol. Vai para o buraco.
Nossa entrevista estava, inicialmente, marcada para o dia do jogo do Brasil contra a Alemanha. Como você passou esse sufoco?
Foi triste. Chorei muito, fiquei louca. Nunca senti tanta saudade do Mané [Garrincha] como nesse dia. Não só da pessoa, mas do jogador que jogou por chuteiras e bandeiras, do grande jogador que morreu pobre. Você coloca um vídeo do Mané, você não quer tirar. Aqueles dribles dele... Em 1962, o Mané ganhou a Copa. Você vai à Suécia e vê que eles têm verdadeira loucura por ele.
Em 1962, você foi ao Chile como madrinha da seleção brasileira ao lado de Mané Garrincha.
E paguei o maior o mico. Cheguei com muito frio e a primeira-dama chilena me emprestou um casaco de vison. Fui eu com o casaco da mulher do presidente. Cheguei no estádio e fazia aquele calor incrível. Tirei o casaco, [o Brasil] fez o gol, e joguei o casaco para cima, mas ele não voltou. A gente [Garrincha e Elza] ainda estava só de namorico, aquele que você acha que pode dar certo. Quando o chileno [Eladio Rojas] cuspiu na cara dele, o Mané só levantou a perna e o jogador fingiu que caiu, e Mané foi expulso. Ao sair do campo, jogam uma pedra nele. Eu vi aquele sangue descendo, entrei no campo, soltaram aquelas cães, e eu correndo no estádio. Madrinha da seleção levando mordida de cachorro na bunda, veja só, aquele vexame.
E teve sua entrada no vestiário masculino da seleção.
Mas não vi ninguém pelado, acredita? Eu corri para ver o Mané, nem pensei que o pessoal estaria tomando banho, mas eu não vi nada. Que vergonha. Ele [Mané] tinha jurado em dar a Copa para mim. Foi lindinho ele. Depois disso...
Isso de ser madrinha se perdeu totalmente. Quem chega próximo dessa posição hoje? A Bruna Marquezine, namorada de Neymar?
É, né? Não sei, não. Ah, tadinha. Tem que estar no estádio, tem que estar presente. Sabe... tem que dar uma reviravolta nesse futebol brasileiro.
Por que chegamos a um resultado assim, como o 7 a 1 da Alemanha no Brasil?
Porque não teve povo. Teve muita gente, mas o povo que gosta de futebol não participou da Copa. Foi tudo mundo caro. O povo mesmo, coitado, participou pela TV ou na areia de Copacabana. E chorando, né? Com esse salário, comprar um ingresso? Agora tem que fazer com que esses estádios maravilhosos e lindos fiquem acessíveis para esse povo. Ninguém consegue comprar um ingresso de R$ 100. Futebol virou elite. Era do povo e virou elite. Fico triste. E agora vem a disputa das eleições. Eu tenho medo que venha outra surpresa como na Copa do Mundo. Vamos levar uma goleada de 7 a 1 outra vez.
E, no caso das eleições, quem seria a Alemanha?
Nós, brasileiros, vamos à luta, mas nossas reivindicações estão completamente erradas. Não saímos às ruas com um objetivo. Saímos para quebradeira, para quebrar ônibus, que é do povo. Cada vez que se quebra um ônibus você deixou de ajudar um trabalhador que precisa daquilo. Acho que existe a necessidade de se ter alguém que fale pelo povo, mas alguém de verdade, não essa coisa de sair na rua sem saber por quem estão lutando. Acho indigno o salário de um médico, de um professor. Está na hora de buscar como uma meta: 'Eu quero isso'. O povo mais inocente que tem é o brasileiro. A gente usa muito o lado do coração, mas falta usar a cabeça. A gente perdoa muito e isso é muito negativo. O Brasil é o país da chance.
Você jJá sabe em quem vai votar?
Ainda não. Estou buscando alguém.
O que acha da presidente Dilma Rousseff?
Gosto dela como mulher. Achei que, quando ela entrasse, ia dar essa força. Mas tirando ela, quem mais tem? Quem está aí na frente é a Dilma. Eu não sei se tem outro candidato que tenha força para colocar esse país no lugar certo.
Em sua primeira aparição no programa de calouros de Ary Barroso, em 1953, você disse que vinha do "planeta fome". Aquilo abriria ainda mais a porta para a manifestação artística da favela e do subúrbio. E hoje esses artistas estão nos palcos com o discurso da ostentação.
Não sou contra, não. Sendo uma coisa boa, a gente aplaude. Agora, minha ostentação era simplesmente comer bem, descer do morro e dar uma vida melhor para meus filhos. Nunca tive isso. Quer dizer, comprei carros, morei bem, tive bens, mas não sei se saberia viver assim apenas.
Você também veio do "planeta racismo".
A fome é indecente, é indigna. A fome é uma coisa muito feia. O racismo você vai tirando aos poucos, a homofobia também, que é um absurdo. Agora a fome não te dá direito nem de falar, nem de dormir, nem de acordar. É muito triste. Só quem já passou por ela, sabe. Agora racismo só faz quem tem dinheiro.
Não nos livramos do racismo ainda?
Não. O racismo está por aí, pelas paredes. Ele está nas bananas. Mal sabem eles que banana é boa à beça.
E ainda teve o "somos todos macacos"...
(Interrompe) Escrever que 'somos todos macacos' é fácil, mas e dizer 'somos todos negros'? Ninguém consegue falar isso. Macaco tudo bem. Pega um macaquinho e coloca no braço, mas quem não é negro, não é negro mesmo. E não aceita ser negro, como se ser negro fosse uma doença, como se gay fosse uma doença. Será que a gente vai se livrar disso um dia?
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