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Há 40 anos, Ramones fazia primeiro show no CBGB; "quinto Ramone" comenta

Pablo Miyazawa

Do UOL, em São Paulo

15/08/2014 06h00

Foi em 16 de agosto de 1974, uma sexta-feira quente de verão, que a formação clássica do Ramones subiu pela primeira vez ao palco de uma casa de shows: o emblemático CBGB, um bar de música ao vivo em formato de garagem no número 315 da Rua Bowery, em Nova York. Naquele espaço nada convidativo, Joey, Johnny, Dee Dee e Tommy Ramone, quatro músicos com pouca experiência em seus instrumentos, encararam uma plateia real pela primeira vez como um quarteto.

A plateia, na verdade, era apenas um punhado de gente: não mais do que dez pessoas, incluindo os funcionários da casa e alguns cães, segundo testemunhas que pagaram US$ 2 para entrar no bar malcheiroso de 50m por 7,5m. A banda tocou de seis a sete músicas de maneira acelerada e pouco precisa, entre elas "Judy is a Punk", "I Don't Wanna to Go Down to the Basement", "Now I Wanna Sniff Some Glue" e "I Don't Wanna Walk Around With You", mais tarde eternizadas no álbum "Ramones" (1976). Tudo em impressionantes 15 minutos.

Com músicas que mal ultrapassavam um minuto de duração e uma postura tão desajeitada quanto espontânea, o quarteto formado no bairro do Queens criou fama na recém surgida cena new wave de Nova York muito por causa da natureza folclórica de suas apresentações. Faixas cruas com poucos acordes e letras sobre problemas mentais, amores destrutivos, drogas recreativas e filmes de terror eram tocadas de forma furiosa e na velocidade da luz.  O vídeo abaixo mostra um show similar, que eles fizeram no mês seguinte.

Não raro os integrantes discutiam entre si nos intervalos das canções. "A gente parava para brigar sobre qual música tocaríamos em seguida", contou o baterista Tommy Ramone em uma entrevista na década de 1980. "Um ponto alto foi quando cada um começou a tocar uma música diferente e só fomos perceber na metade".

As circunstâncias em torno do evento histórico de exatas quatro décadas atrás, que serão completadas neste sábado (16), permanecem nebulosas, muito porque todos os protagonistas já não estão vivos para remontar os detalhes: Tommy (ou Thomas Elderlyi), morreu em 11 de julho último; o vocalista Joey (Jeffrey Hyman), em 2001, seguido do baixista Dee Dee (Douglas Colvin), em 2002, e do guitarrista Johnny (John Cummings), em 2004.

Um início sem glamour

Antes de encarar o diminuto palco do CBGB, o Ramones passou meses ensaiando no estúdio Performance, onde trabalhava Monte A. Melnick. Gerente de turnê do grupo por mais de 20 anos, nos primeiros meses ele foi o responsável por "diversos trabalhos, como cuidar do som, roadie, agente de viagens, motorista etc", conforme ele, que é considerado o "quinto Ramone", definiu em entrevista exclusiva ao UOL.

Nos primeiros ensaios, a banda era um trio: Dee Dee no baixo e vocal, Johnny na guitarra e Joey na bateria. Meses depois, Tommy, que era promotor do grupo, se arriscou nas baquetas, para Joey então assumir a voz principal. Definida a formação de quarteto, o Ramones agendou o primeiro show oficial no CBGB abrindo para uma banda chamada Angel and the Snake, que mais tarde se consagraria com o nome Blondie. "É claro que todos aqueles ensaios no Performance fizeram uma diferença. Ali eles puderam desenvolver os primórdios da música deles e a atuação no palco", afirma Melnick, que é autor do livro "Na Estrada com os Ramones" (ed. Ideal).

O proprietário do bar, Hilly Kristal, não tinha a pretensão de inaugurar uma meca do rock. A ideia inicial era atrair artistas de música regional, daí o nome da casa: "CBGB & OFMUG", sigla para "Country, Bluegrass e Blues & Outras Músicas para Glutões Refinados", na tradução livre. Mas com o pouco movimento no bar, Kristal cedeu espaço a outros gêneros, a partir de 1974. A primeira aposta surgiu em março com o quarteto local Television, e a chance ao Ramones foi oferecida em agosto.

O CBGB de 1974 era bem diferente da casa de shows abarrotada que viria a se tornar anos mais tarde. O palco era pequeno, cercado por mesas e cadeiras, e parte do espaço era ocupado por uma mesa de sinuca monopolizada por membros do grupo de motociclistas Hell's Angels. Pôsteres de estrelas de cinema antigo, como a atriz alemã Marlene Dietrich, decoravam as paredes encardidas. O piso era sujo e o aroma do ambiente era desagradável.

Ao longo dos anos, jamais houve uma declaração dos integrantes do Ramones que não chamasse a atenção para a natureza degradada do bar. "Era pequeno, mas íntimo. E nunca estava limpo", declarou Tommy para o jornalista Everett True no livro "Hey Ho Let's Go - A História dos Ramones" (ed. Madras).

"Quando descarregamos o equipamento para a passagem de som, tínhamos que tomar cuidado com ratos e merda de cachorro no chão. Assim que você entrava lá, o cheiro da cerveja fermentada era tão poderoso que fazia você querer voltar pra rua. Eles não tinham banheiros, então o público mijava onde estivesse", declarou Dee Dee em sua biografia, "Coração Envenenado - Minha Vida com os Ramones" (Ed. Barracuda). Melnick relata uma visão menos sombria. "O CBGB era um um bar tosco e bem hardcore, mas com os anos o mito de ser tão sujo foi bastante exagerado".

O primeiro show

Com o tempo, cada Ramone concedeu lembranças detalhadas sobre a noite de 16 de agosto de 1974. Johnny definiu a experiência como "um ensaio para dez pessoas". Joey relatou que "não havia quase ninguém". "Só o bartender e o cachorro, mais dois caras dos Cockettes", disse, referindo-se a Gorilla Rose e Tomata du Plenty, membros de um grupo teatral de drag queens de San Francisco. "O clima era de cabaré", descreveu Dee Dee. "O público parecia um monte de abóboras iluminadas na cerca do cemitério em noite de Halloween. Eles nos deram força durante o show, ficavam gritando, uivando e aplaudindo dramaticamente entre cada música".

No palco, a simplicidade combinava com a inexperiência. Não havia cenário atrás da bateria de sete peças de Tommy, e apenas dois amplificadores da marca Mike Matthews Freedom forneciam o som, equilibrados sobre cadeiras de madeira. Posicionado do lado esquerdo, Dee Dee usou um baixo Danelectro (que tocava sem palheta), enquanto do lado direito, Johnny tocou uma guitarra Mosrite azul --ambos instrumentos foram comprados seis meses antes. Os dois inverteriam a posição no palco shows depois, mas esta não seria a única mudança estética do grupo.

Capa do disco "New York Dolls" (1973), da banda New York Dolls - Reprodução - Reprodução
Capa do disco "New York Dolls" (1973), da banda New York Dolls
Imagem: Reprodução

Visualmente, aquele proto-Ramones pouco remetia à banda uniformizada de modo quase militar, com jeans, jaquetas de couro e tênis, trajes que fazem da banda hoje um ícone fashion. Pelo menos naquele e nos 15 shows seguintes no CBGB, o Ramones foi influenciado pela moda glitter. A inspiração era o grupo New York Dolls, de visual espalhafatoso, penteados exagerados e maquiagem feminina.

Na estreia, Johnny vestia calças prateadas de lamê e uma jaqueta de couro com gola de pele de leopardo. Joey, que já havia tocado em uma banda glam chamada Sniper e era conhecido na cena noturna de Nova York pelo pseudônimo de Jeff Starship, era adepto de calças de couro e botas plataforma.

"Essas eram as roupas que usávamos para sair e assistir ao New York Dolls, mas e agora que estamos começando uma banda, o que fazer?", questionou-se Johnny em "Commando - A Autobiografia de Johnny Ramone" (ed. LeYa). "No início, era tentativa e erro. O glitter ainda estava em alta. A gente sabia que precisávamos nos livrar das botas de plataforma e tudo o mais, e nosso visual estava se desenvolvendo, mas isso não era importante como se tornaria depois. Ninguém ia nos assistir. E nenhuma banda irá se parecer igual no primeiro show e após um ano de estrada".

Festa estranha, gente esquisita

A performance de palco também era diferente do avassalador estilo rolo compressor que se tornou a marca do Ramones: Joey fazia da atuação a razão de sua vida, com movimentos espasmódicos, curvando-se ao pé do microfone, despencando do palco e eventualmente machucando os joelhos. Dee Dee saltava desengonçado e não raro derrubava o pedestal do microfone ou se perdia nas próprias notas.

Tommy exibia pouca desenvoltura e parecia um boneco de corda, dados os movimentos duros com que espancava na bateria. Apesar do figurino inusitado, Johnny já exibia a expressão intimidante e a precisão clínica que o tornaram famoso, espancando a guitarra com violentos movimentos para baixo, de braço e punho. Anos mais tarde, Kristal, que morreu em 2007, relembrou aquela noite no site do CBGB: "Eles começavam e paravam o tempo todo, o equipamento dava problema, e gritavam uns com os outros. Era uma bagunça".

Melnick concorda com as palavras de Johnny sobre o clima de ensaio que imperava nas primeiras apresentações. "No início, a banda era muito, muito crua. Eles ainda estavam trabalhando na presença de palco e em como tocar os instrumentos. Foi por isso mesmo que eles se sentiam muito confortáveis em desenvolver isso tudo ali", disse ao UOL.

Apesar dos tropeços, aquele Ramones novato impressionou os poucos felizardos que os viram em condições singulares. "Eles eram fantásticos, tinham uma coisa muito específica", declarou Chris Stein, guitarrista do Blondie. Alan Vega, vocalista da banda Suicide, foi além: "Eu adorei o nome, e o jeito como eles começavam cada música com Dee Dee gritando 'one, two, three, four' no microfone", descreveu no livro "Eu Dormi com Joey Ramone" (ed. Dublinense), biografia escrita por Mickey Leigh, irmão do vocalista.

Johnny teria comentado: "O Alan do Suicide me falou: 'Uau, era isso o que eu estava esperando! Vocês são incríveis!' Falei para o Dee Dee que o cara é doido, e que, se conseguimos enganá-lo, talvez conseguíssemos enganar mais gente. E a cada novo show mais pessoas apareciam".

Dee Dee, por sua vez, teve certeza de que a noite havia sido perfeita. "Tocamos 15 minutos e fomos imediatamente um sucesso. Nós quatro tínhamos uma química insana", escreveu. "No final, arremessei meu Danelectro para cima e o deixei quicar no chão até quebrar. Achei que era a última palavra em glamour". Naquela mesma noite histórica, quando deixou o bar bêbado às 4 da manhã, o baixista conheceu Connie, que se tornaria sua namorada e com quem experimentou anos de um relacionamento destrutivo, movido a heroína e violência.

Pais do punk

Há quem diga que, não fosse a frequência com que tocou no CBGB --74 vezes em cinco anos--, o Ramones não teria alcançado o status de ícone incontestável do punk rock. Mas para Melnick, o destino do grupo já estava escrito e teria acontecido mesmo sem a boa vontade de Hilly Kristal, que permitiu que o grupo continuasse se apresentando no bar nas semanas seguintes.

"O CBGB deu a muitas bandas um marco inicial para o desenvolvimento de seus trabalhos. Os Ramones tinham uma vontade incontrolável de tocar a música deles em qualquer lugar. Se não fosse ali, teriam encontrado outro local para começar", diz. A última vez em que o Ramones tocou no CBGB foi em 10 de abril de 1979. Em 2008, o local foi reformado e passou a abrigar uma loja de grife do estilista John Varvatos.

A vontade inabalável de dar certo e o foco profissional obssessivo e quase ingênuo fizeram o Ramones persistir e, ainda que tardiamente, ser considerado uma das mais influentes bandas da história da música. "Eles tinham uma visão, eram muito dedicados ao que tinham na cabeça e trabalharam muito duro na direção desse objetivo", crê Melnick, que se orgulha de ser a única pessoa do mundo a estar presente nos 2.263 shows dos 22 anos do grupo.

"Em qualquer lugar que eles tocassem, os garotos os viam como se olhassem a si próprios, algo como: 'A gente também pode fazer isso', e assim novas bandas se formaram nos Estados Unidos e ao redor do mundo", define. "Eu sou feliz de ter tido a chance de fazer parte desse icônico legado musical."