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Com sambas inéditos, Luiz Melodia diz: "O social sempre me atingiu"

Luiz Melodia apresenta em São Paulo e no Rio de Janeiro show do novo disco, "Zerima" - Divulgação
Luiz Melodia apresenta em São Paulo e no Rio de Janeiro show do novo disco, "Zerima" Imagem: Divulgação

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

23/09/2014 13h06

Luiz Melodia nunca passou longos períodos distante dos palcos. Sua última turnê, "Estação Melodia", durou anos e levou o compositor carioca a viajar por todo o Brasil e se aventurar na Europa. Mas o show baseado no novo disco "Zerima" e que estreia nesta terça em São Paulo, no Theatro Net SP (e que será levado ao Rio de Janeiro nos dias 7 e 8 de outubro no Theatro Net Rio) tem sabor de um grande retorno. E é.

O eterno Negro Gato, descoberto aos 22 anos no morro de São Carlos, no bairro carioca do Estácio, leva a vida com cadência própria. A nova seara de bossas e sambas, de amores e dores, é a primeira inédita em mais de 12 anos --o último álbum autoral foi "Retrato do Artista Quando Coisa" (2001). "Eu gosto do tempo, gosto de respeitar os meus sentimentos musicais", ele conta ao UOL, por telefone, sobre o período sabático sem compor.

Na gênese do álbum, onde os ritmos se misturam --uma simbiose comum em sua discografia--. abriga uma reflexão diante dos percalços que adiaram as gravações. "Tive uma sinusite com uma otite horrorosa. Nunca senti tanta dor. Fiquei na cama durante três meses, e não deixei de compor, mesmo com o reflexo dos remédios. Tinha que acontecer. Parecia uma espécie de tarefa, uma guerra minha, particular, que eu precisava enfrentar, sei lá".

A família surge, então, no centro da concepção de "Zerima". O nome do disco, por exemplo, é um anagrama de Marize, sua irmã que morreu há três anos; o samba de recôncavo de "Moça Bonita" traz composição e participação da mulher Jane; e a regravação de "Maracangalha", de Dorival Caymmi, ganha um rap do filho Jahal.

Entre a crônica e a poesia do cantor de 63 anos, que conquistam constantemente novos públicos --"mas não forço barra ou apelo para os jovens", ele enfatiza --, suas canções têm certo cunho social, mesmo que sejam uma antítese da realidade das ruas. "Quando eu estou muito estupefato com essas situações acabo escrevendo e me expressando da melhor maneira possível".



UOL - Você tem um ritmo próprio para lançar discos...
Luiz Melodia - Pois é, você já sabe. É uma decisão minha. Nunca fui de gravar muito. Desde o começo da carreira, nunca tive essa relação.

Você tem mais de 40 anos de carreira e "Zerima" é apenas seu 10° disco de inéditas. Depois que lançou "Pérola Negra" e foi contratado pela Philips, em 1973, você enfrentou a pressão de ter que gravar mais um álbum em seguida?
Sim, nós começamos a bater de frente. Virei o cara difícil, o artista maldito. Eu gosto do tempo, gosto de respeitar o meus sentimentos musicais. Não é tão diferente do processo de agora.

Mas dessa vez levou 12 anos...
Eu estava ainda com o disco "Estação Melodia", que surpreendentemente me levou para fora do país, coisa que pouco fiz na carreira. Enquanto isso, surgiram algumas canções. Quando eu senti que já estava no momento, eu convidei o [produtor] Líber Gadelha, com quem já trabalhei e confio muito. Durante o período de gravação, eu compunha também. Mesmo com as canções já prontas, eu achava que ainda podia fazer outras. Na verdade, o Líber estava à espera de um transplanta de coração e, mesmo assim, ele queria ir: "Não quero morrer sem gravar". Pedi para ele ir mais leve e paramos a gravação para esperar sua recuperação. Falei com Humberto Araújo e, prontamente, ele assumiu a produção do disco, mas em seguida fui eu que fiquei doente (risos). Tive uma sinusite com uma otite horrorosa, nunca senti tanta dor. Parei. Durante esses três meses eu compunha também, mesmo com o reflexo dos remédios. Fui escrevendo e revendo canções que estavam semi-prontas. Quando recuperei, entramos de vez. Foi todo um processo. Foi algo sério, mas tinha que acontecer. Parecia uma espécie de tarefa, uma guerra minha, particular, sei lá.

É um álbum, sobretudo, de amor e de dores?
Sim, amores e dores. Ele foi tomando esse caminho naturalmente. Não pensei em fazer o disco sobre o amor sentimental ou, como um crítico comentou, sobre dor de cotovelo. Uma bobagem.

E é também um disco muito familiar. Os retratos da família estão no encarte, nas músicas...
Foi acontecendo. Tem uma música ["Moça Bonita"] que é da Jane, minha mulher. Ela estava cantando na casa da praia e eu achei interessante. Até brinquei: "Olha que eu vou gravá-la". É um samba de roda, do recôncavo. Achei que tinha a ver com a intenção que eu sempre tive em vários gêneros. Teve o Mahal que eu convidei para fazer um rap em "Maracagalha". Foi ele que, na verdade, que deu uma canetada bonita. Parecia que ele conhecia Caymmi há anos.

A instrumental "Amusicadonicholas" é um presente para o neto?
Sim, é o filho do Mahal. Fiz a canção para ele, achei que poderia ser um presente de amor para ele se lembrar pela vida toda. "Zerima" eu escrevi para minha irmã, que morreu há três anos em São Paulo, após passar mal em uma festa. O nome dela é Marize, mas fiz um anagrama. Acho que essa mistura com o nome dele ficou bem forte. Quando o disco saiu, todo mundo perguntou o que o nome queria dizer. Eu dizia: "Procure no Google". As pessoas voltavam e diziam que era um flor linda que dava no deserto (risos). "Zerima" é o resultado desse encontro familiar, que é também meu público, pessoas que gostam do meu trabalho. É uma celebração.

No ano passado seu plano era de resgatar, em show, o primeiro álbum, "Pérola Negra". Esse projeto ainda está de pé?
Nesse novo show tem algumas canções desse disco, como "Pérola Negra", "Magrelinha" e "Vale Quanto Pesa". Pensei, em uma época, resgatar esse disco, mas foi por água abaixo. Muita gente daquela época já morreu. Agora eu canto também "Parei e Olhei", uma música que o Roberto Carlos cantava [em 1965] na Jovem Guarda. Eu ouvia muito quando garoto.



Suas canções não trazem um contexto social direito, mas na Virada Cultural 2014, em São Paulo, você pediu ajuda para os viciados em crack antes de cantar "Magrelinha". O quanto esses temas te atingem e como essas questões são trabalhadas na sua música?
Sou cria de um lugar onde as pessoas sobrevivem com grande dificuldade. Essa coisa toda veio desde quando eu nasci, das condições em que eu vivia. Então, sua sensibilidade fica voltada para isso quando você escreve. Tem um contexto social que sempre me atingiu. Se você não tem uma sensibilidade avançada, você não vê. Tem muita gente que finge que não vê e ignora. Quando eu estou muito estupefato com essas situações acabo escrevendo e me expressando da melhor maneira possível.

Mas suas canções parecem servir de antítese para todos esses problemas.
Na vida, você pode ser mais direto quando você tem uma intenção. Você pode escrever sobre essa dor, esse dia-a-dia, até para amenizar aquele que está vivendo a situação.

Muitos artistas da mesmo época que você estão sendo redescobertos por um novo público e, embora sua obra seja sazonal, parece que você nunca perdeu essa comunicação com novos artistas e fãs. A Céu, por exemplo, canta com você na nova "Dor de Carnaval". Nos anos 90, Cássia Eller já te regravava...
Sempre existiu e é algo bacana. Não forço barra ou apelo para os jovens. Quando eles vão ao camarim, depois do show, é legal. Eles sabem do que gostam e, de vez em quando, estão me convidando para gravar com eles. É uma troca. Principalmente na música brasileira, que sempre foi interessante. Desde o sertanejo, que eu sempre ouvi quando criança, ao samba do raiz. A Cássia Eller cantava tudo e cantava bem. Porra, isso é que é demais.