Topo

Documentário conta como o death metal ajuda jovens na Angola pós-guerra

Maurício Dehò

Do UOL, em São Paulo

13/11/2014 05h00

Tocar heavy metal extremo, cantar em português e enfrentar a complicada vida do underground já são escolhas que fazem a jornada de qualquer banda ser tortuosa. Imagine, então, se não estivermos falando do Brasil, mas de Angola. Mais do que uma paixão de adolescentes e um sonho de fazer fama, esse estilo musical virou uma maneira de enfrentar as dificuldades do pós-guerra e ajudar na reconstrução cultural daquele país africano de língua portuguesa.

A criação dessa cena roqueira e a maneira como ela ajuda os jovens angolanos a superarem os problemas são o foco do documentário "Death Metal Angola", filme de baixo orçamento que ganhou reconhecimento por entrar na lista dos 134 documentários pré-selecionados para o Oscar de 2015. Surgido por acaso, durante uma visita do diretor norte-americano Jeremy Xido a Angola para realizar um outro projeto, "Death Metal Angola" tem uma certa mística na sua concepção.

"Eu conheci Wilker Flores por acaso, quando estava em Huambo, pesquisando sobre um outro projeto, sobre uma linha de trem construída por chineses que passa por lá. Em Huambo só tem um bom lugar para tomar um café, e eu estava lá, sentado no pátio, com gente de todo tipo. Um cara acenou para mim, queria conversar e me contou que tocava death metal. Eu não acreditei, tinha que ouvir aquilo", contou ele ao UOL.

"Então ele disse que me levaria ao 'Orfanato', que achei que era alguma boate, ou bar. Fui no meio da noite para esse lugar. Lá, ele pegou a energia elétrica dos vizinhos para plugar o amplificador, a luz era do nosso carro e, no quintal, ele começou a tocar aquela guitarra suja. E a cantar, mas sem microfone. Vi, na verdade, que era um orfanato de verdade, tinha crianças correndo por todo lado, e eu não entendia nada. Ao mesmo tempo, a música era fantástica, então eu me dei conta que precisava saber mais sobre aquilo e foi como surgiu o projeto", adicionou Jeremy Xido.

xido

  • Reprodução/Facebook

    Eu conheci Wilker Flores por acaso, quando estava em Huambo, pesquisando sobre um outro projeto, sobre uma linha de trem construída por chineses que passa por lá. Em Huambo só tem um bom lugar para tomar um café, e eu estava lá, sentado no pátio, com gente de todo tipo. Um cara acenou para mim, queria conversar e me contou que tocava death metal. Eu não acreditei, tinha que ouvir aquilo

    Jeremy Xido, à dir. na foto com Wilker Flores

Wilker Flores é protagonista do documentário ao lado de sua namorada, Sonia Ferreira. Ela administra o orfanato citado pelo diretor, onde 55 crianças recebem cuidados. Ao mesmo tempo em que mostra a vida do casal e exibe a realidade do pós-guerra em Angola, o diretor conta como se organizou a cena do rock e do metal naquele país, até a realização do primeiro festival musical do estilo.

Além de Wilker, que faz a sua música sozinho, diversas bandas figuram no filme, como Dor Fantasma, Before Crush e Neblina --nem todas de death metal, como indica o título, mas também das vertentes thrash, metalcore e heavy metal tradicional.

Sem grandes verbas para embarcar num projeto ambicioso em Angola, Xido teve ajuda de um produtor nos EUA e contou com muitos favores que sairiam caro no país africano, mas que foram feitos na "camaradagem" pelos moradores locais. Além disso, ele teve de superar as próprias limitações em relação ao gênero musical retratado.

"Eu cresci odiando heavy metal. Em Detroit, só os garotos brancos ricos do subúrbio ouviam. Cresci com esse preconceito e foi só ao descobrir a cena de Angola que isso mudou. Um dos caras me deu uma playlist do que eu deveria ouvir, e comecei a fazer longas caminhadas por Nova York, detonando o som nos meus fones, e amei. O metal dá uma sensação de poder que poucos estilos proporcionam", explicou ele.

Raízes africanas

Um dos trabalhos feitos pelas bandas em Angola foi o de mostrar que, diferentemente do que muitos pensam por lá, o rock tem fortes raízes africanas, já que veio da música negra. Ao reforçar isso, os angolanos resgatam aspectos culturais do passado, algo importante em um país que foi destruído por conflitos --Angola viveu uma guerra civil entre 1975 e 2002 e há menos de dez anos passa por um período mais tranquilo, com estabilidade e investimentos concretos para se reerguer.

"No fundo, o filme é sobre como as pessoas se reconstroem após a guerra e a devastação. São os anos após o conflito, quando tudo foi destruído: cultura e pessoas. Eles estão construindo uma sociedade que não é só sobre o dinheiro, eles querem construir uma verdade, de forma saudável. Quando estive lá, não foi uma experiência de guerra, mas Sonia já viveu isso, já teve de colocar as crianças num avião para fugir de bombardeios. Todos têm cicatrizes do passado", explica o diretor. "Tentar unir famílias e colocar comida na mesa todo dia ainda é o mais difícil, mas Sonia é ótima em conseguir fazer isso."

As bandas

O documentário "Death Metal Angola" ajudou a cena local, agrupando as bandas e dando mais força para que elas realizassem o sonho de ter o primeiro festival de metal no país. Entre elas está o grupo Dor Fantasma, formado em 2006 na cidade de Benguela, como um projeto de rock alternativo, mas que se metamorfoseou em uma banda de thrash metal. Eles lançarão seu primeiro EP em 2015.

"O documentário mudou o conceito que as pessoas tinham sobre o metal, não só em Angola, como em outros países. Valorizou as bandas nacionais e abriu portas para patrocinadores e promotores", disse Jayro Cardoso, guitarrista da banda, que explicou que nem todos os metaleiros locais quiseram, a princípio, participar do filme por temerem o preconceito e até acharem que seriam demitidos de seus trabalhos.

dor

  • O documentário mudou o conceito que as pessoas tinham sobre o metal, não só em Angola, como em outros países. Valorizou as bandas nacionais e abriu portas para patrocinadores e promotores

    Jayro Cardoso, guitarrista da banda Dor Fantasma

Apesar disso, ele considera que a cena cresceu não só no número de bandas e na qualidade delas, mas na difusão do som pesado para os leigos. Parte da audiência nos shows é de curiosos, que ainda não são fãs de metal, mas que comparecem para dar uma chance aos grupos. É mais uma faceta de uma "nova Angola".

"A Angola é sem dúvidas um país que está virado para o futuro. Perdemos amigos e familiares no conflito armado, mas hoje o país é alheio a guerras. O país está cada vez mais unido e tem sido alvo de muitos investimentos", afirmou ele, que há alguns anos nunca poderia ter realizado seu sonho de tocar sobre um palco. "Ser músico e tocar metal num país onde ninguém diria ser possível é sem dúvida uma sensação gratificante, é fazer parte da história."

"Death Metal Angola" foi aclamado em suas primeiras exibições, em festivais, ganhando elogios como "um clássico cult em nascimento" e "obrigatório de se assistir". A estreia nos cinemas aconteceu nos EUA, em 7 de novembro, e, atualmente, a maior luta do diretor e de seus companheiros é chamar a atenção dos integrantes da Academia para avançar na disputa do Oscar, passando da atual lista com 134 classificados para a dos cinco que serão indicados ao prêmio de melhor documentário.

Adoração pelo Sepultura

Do lado de lá do oceano, as bandas angolanas veem com adoração os "primos" pioneiros do Sepultura, banda brasileira que virou fenômeno mundial na década de 1990.

"Todo o metaleiro que se preze por cá, tem de conhecer Sepultura (risos). Na verdade, o Sepultura é uma das minhas principais influências. E já foi uma das bandas mais ouvidas numa rádio local de rock, a Volume 10", conta o guitarrista do Dor Fantasma, Jayro Cardoso.

O diretor Jeremy Xido acha que os brasileiros podem ter ainda mais importância por lá: "Eles são um aliado natural para a música em Angola. Há muitos angolanos que já viajaram ao Brasil, ao Rock in Rio, para vê-los. Agora o que espero é que os brasileiros, fãs ou músicos, também prestem atenção nos angolanos."

Confira abaixo o trailer de "Death Metal Angola" e vídeos das bandas Before Crush, Dor Fantasma e Neblina: