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Com vozes de Bonner e Silvio, Racionais lança disco curto e enigmático

Capa de "Cores & Valores", novo álbum dos Racionais Mc"s - Reprodução
Capa de "Cores & Valores", novo álbum dos Racionais Mc's Imagem: Reprodução

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

25/11/2014 12h09

A cena é a mesma, seja nos shows da turnê comemorativa de 25 anos dos Racionais, no teaser do novo álbum divulgado pelo grupo na semana passada ou na capa de “Cores e Valores”, o primeiro registro em 12 anos, lançado nesta terça-feira (25): uma ação “criminosa”, personagens com metralhadores e máscaras de palhaço, armas e dinheiro. Todos de preto e laranja – cor da vitalidade, prosperidade e sucesso.

O personagem do ladrão é uma constante na obra dos Racionais, desde Robin Hood e São Dimas, citados pelo grupo em muitas letras. É uma espécie de duplo dos rappers – o que eles poderiam ser se as rimas e as batidas não tivessem arrebatado “os quatro pretos mais perigosos do Brasil”. No novo álbum, ele chega para questionar o novo paradigma brasileiro em outro tom, sem a crueza, o lirismo e a verborragia dos versos que fizeram do grupo do bairro paulista Capão Redondo o maior nome do rap do Brasil.

Capa de "Cores & Valores", novo álbum dos Racionais Mc's - Reprodução - Reprodução
Capa de "Cores e Valores", novo álbum dos Racionais Mc's (R$ 9,99 na loja virtual do GooglePlay)
Imagem: Reprodução

Gravado no Maraca Estúdio, no Capão, e finalizado no Quad Studios, em Nova York, “Cores e Valores” (ouça aqui) é um álbum tão curto, quanto enigmático. Em versos econômicos, o disco parece ser dividido entre duas ideias – remetendo ao lado a e lado b de um vinil. Na primeira parte, como em um grande ato, vinhetas remontam a música “Cores & Valores/Somos o que Somos”, já conhecida por fãs e tocada nos shows da última turnê. O tom é minimalista, sem muita variação e samples, com clara inspiração no hip-hop americano.


Nas letras, o Brasil pós-governo Lula dá as caras pela primeira vez. O metrô chegou ao Capão, houve um aprofundamento da consciência do negro, mas a juventude periférica continua morrendo aos montes. Com notícias agridoces, os versos surgem com uma consciência em camadas. Nada é direto como "Marighella", último single lançado pelo grupo em 2012. 

“Ovelhas negras desde sempre acompanham a mim / A fase negra vem, era nóis também sim / Na linha pontilhada vou indo indo indo / Na terra cuja o herói matou um milhão de índio”, canta Brown na primeira faixa, “Cores e Valores”

“Eu Compro” versa sobre a ostentação e o consumo como senha para a ascensão social. “Fique rico ou morra tentando / assim falou 50 cent, não tem como / sem cash você não chega no game”, canta Ice Blue. O sucesso, desmistificado com o tempo, também vale reflexão: “Os trutas que estão no maior conchavo, torcendo por você e calculando seu cada centavo ficaram cegos / a meta é tomar seu lugar, intravenosa, venenosa, via jugular” (“Preto Zica”).

Na linha de “A Vítima”, do álbum anterior, “Nada Como Um Dia Após Outro Dia” (2002), Edi Rock conta a história de um assaltante de “20 e poucos anos” com olhar midiático em “A escolha que eu fiz”. “Se o Datena filmar e minha estrela brilhar, eu morro feliz”.

"Lado B"
O tom do “segundo lado” é mais variado, com ideias mais completas, batidas funkeadas e um tom nostálgico, resgatando histórias dos 25 anos de carreira, recém-completados.

Ainda tenso, “A Praça” usa falas de repórteres e âncoras de telejornais, como William Bonner, para contar o pânico na Praça da Sé em 2007, quando um show dos Racionais terminou em confronto com a polícia. “Tentarem nos eliminar, pensaram em manipular / tentaram bloquear força da África, chamaram força tática, cavalaria”, relembra Edi Rock, em uma crítica aberta à cobertura midiática sobre o caso.

“O Mal e o Bem” segue a linha do trabalho solo de Brown, mais soul, e narra o encontro entre Edi Rock e KL Jay. “Em 90, a cena ficou violenta / Brown e Blue com o ‘Pânico na Zona Sul’ / escolha seu caminho negro limitado, a voz ativa de um povo que é descriminado”.

A base das músicas fica um pouco mais familiar, embora o grupo abra espaço – assim como nos shows – para o clã que os seguem. As batidas de “Quanto Vale o Show?”, primeiro single do álbum, foram criadas por Dj Cia, do RZO. No rap nostálgico, Brown relembra o período anterior ao grupo, no período de 1983 a 1987, sob a voz de Silvio Santos e o sample de “Gonna Fly Now”, tema do filme “Rocky”.

O álbum chega ao fim amaciando a carne, em um tom mais otimista. “Você me Deve” tem batida dançante, com samples de metais e cordas, enquanto Brown versa sobre “putas e loucos” no “asfalto selvagem”, e sobre “o preto que gosta de curtir no salão”.

O soul desce pesado na última faixa, a romântica “Eu Te Proponho”. “Vamos fugir desse lugar, baby”, canta Brown, seguido do sample de “Castiçal”, de Cassiano.

A chave do disco talvez esteja no single “Quanto Vale o Show?”. "Corpo negro semi-nu encontrado no lixão em São Paulo / A última a abolir a escravidão / Dezembro sangrento SP, mundo cão promete / Nuvens e valas, chuvas de balas em 87 / Quanto vale? Quanto vale o show?", narra Brown, no fim da música. O rap ainda é compromisso e estar no palco (e fazer dançar) é um ato político dessa quadrilha com roupas de garis. Doze anos se passaram, e os fãs podem discordar dos novos rumos, mas ainda assim os Racionais continuam “vivão e vivendo”.