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Djavan relança 18 discos e afirma: "gosto de saber que sou incompreensível"

Djavan revisita a carreira no box com todos seus álbuns e raridades -  Leo Aversa/Divulgação
Djavan revisita a carreira no box com todos seus álbuns e raridades Imagem: Leo Aversa/Divulgação

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

12/12/2014 07h00

É uma questão de sorte (e um mistério maior do que suas próprias letras) o fato de Djavan ser um artista popular. "Acho que é um milagre eu não ter uma música exatamente popular e ainda assim ter conseguido me transformar em um artista popular, tocar nas rádios e bares, como os artistas sertanejos", revela, em entrevista ao UOL.

Com a fama de compositor hermético, de versos como "Açaí, guardiã / Zum de besouro um ímã / Branca é a tez da manhã", de "Açaí", ele ri do paradoxo: "Eu até gosto de saber que não sou compreensível para todo o mundo. Agora temos aí 236 letras para quem quiser se debruçar e fazer a própria análise".

O cantor e compositor de 65 anos faz uma análise própria dos quase 40 anos de carreira ao relançar seus 18 discos (com exceção do último, "Rua dos Amores", de 2012) na caixa "Obra Completa de 1976 a 2010". "Eu pude mergulhar e reviver todas as sensações de cada período da minha vida. Foi um trabalho que mexeu muito comigo."

A diversidade está presente na música do alagoano do primeiro disco, "A Voz, o Violão, a Música de Djavan" (1976) --trabalho que o desagradou na época--, ao último álbum autoral revisitado, "Matizes" (2007), que é relançado com nova mixagem.

Além de dar ao público oportunidade de ouvir grandes parcerias que Djavan coleciona na vida, como George Duke, Paco de Lucía e Stevie Wonder, a caixa ainda revela, em um longo texto assinado pelo próprio cantor, suas experiências com cada álbum.

Entre elas, o incômodo com o estrondoso sucesso do álbum "Djavan ao Vivo", de 1999, que vendeu quase 2 milhões de cópias. A gravadora, feliz com a galinha dos ovos de ouro, pediu a Djavan um disco popular. Ele cortou a expectativa pela raiz.

Em processo de composição para um novo álbum, ele comemora, com simplicidade, o retorno da inspiração: "Não posso me dar ao luxo de perder a inspiração. Tenho que achar uma maneira de sobreviver".

"Djavan - Obra Completa" (20 CDs, Sony Music, R$ 390) - Divulgação - Divulgação
"Djavan - Obra Completa" (20 CDs, Sony Music, R$ 390)
Imagem: Divulgação

UOL - Você precisou ouvir todos os seus discos após muitos anos. O que essa revisita revelou?

Djavan - Foi uma experiência necessária, eu precisava ouvir tudo para fazer um trabalho como esse de remasterização. Eu não tinha contato com essa realidade. Eu pude mergulhar e reviver todas as sensações de cada período da minha vida. Foi um trabalho que mexeu muito comigo.

Você remixou completamente o álbum "Matizes" (2007) para a caixa. O que não lhe agradava ali?

Durante a gravação, eu tive a participação de três engenheiros de som diferentes. Houve problemas pessoais, por causa de doença, e não foi possível contorná-los. Isso foi determinante.

Sua carreira começou com “A Voz, o Violão, a Música de Djavan”, com produção de Aloysio de Oliveira, um disco essencialmente de sambas –o que não lhe agradou na época.

Esse disco, pela razão lógica, foi o mais importante e o mais esperado por mim. Foi polêmico do ponto de vista da minha expectativa. Eu esperava ter feito um disco correspondente ao meu grau de diversidade, que eu já impunha no trabalho. Eu cheguei à conclusão depois que foi o disco possível de ser feito. Aloysio era um sujeito talentoso e viu uma diversidade naqueles sambas. Fiquei muito chocado na época, mas depois eu relaxei e vi que, de alguma maneira, ele estava certo.

Você disse certa vez que, após escrever uma canção, você tem o sentimento de ser a pessoa mais poderosa do mundo. Como anda sua relação com a composição?

É uma alegria, primeiro por fazer algo que te faz feliz e, segundo, por conseguir fazer de novo. Vou fazer 40 anos de carreira no ano que vem e tenho o mesmo gosto pela vida artística. Estou começando a compor para o novo disco com uma alegria e, principalmente, uma esperança em continuar descobrindo algum frescor. Isso é importante, não só na profissão da música, mas em todas.

Muitos compositores da sua época assumem uma perda na inspiração com o passar do tempo. Sente medo de perder essa alegria?

Eu ainda não tive sequer esse pensamento. Eu não sei se isso vai acontecer ou não. Eu vivo uma vida cíclica de dois anos. Um ano eu dedico à turnê e o outro a um novo trabalho. Quando termino a turnê, eu já sinto uma necessidade enorme de fazer uma música nova. Eu sinto uma necessidade física, me sinto mal por não ter uma nova expressão. Eu preciso voltar a compor para me autoafirmar. É uma coisa muito pessoal, não sei nem por que eu expresso isso. Não posso me dar ao luxo de perder a inspiração. Tenho que achar uma maneira de sobreviver.

Com a nova caixa em mãos, é fácil ver o número de hits que você já emplacou nos anos 80, 90. E são canções que ainda tocam nas rádios.

Eu nunca coloquei essas questões como tendência e mercado para guiar uma produção. Eu sempre abri mão de prestar atenção nessas outras coisas. A imaginação sempre foi tudo para mim. Senão perde a graça.

Mas no livreto da caixa você comenta que sua gravadora pedia um grande sucesso, após você ter vendido quase 2 milhões com seu álbum ao vivo de 1999.

O que parece ser difícil demais, quase que impossível, que é trabalhar à margem desse processo, acaba sendo o mais simples. Em todo lugar (gravadora) que eu chegava, a primeira coisa que ficava determinada é que eu não queria intercepção de ninguém. Não sei se, por causa dessa minha postura, mas as pessoas acabavam entendendo que era exatamente assim que tinha que ser. Eu acho que os resultados, pelo que se vê, acabavam sendo o que se esperava. A gravadora não está ali para brincar. Ela investe em algo esperando o retorno. Eu tive a sorte de ter gravadoras investindo em mim, no início, sem esperar certo retorno.

Djavan

  • A poesia tem esse papel, de fazer com que as pessoas pensem. É impossível você pensar que todo mundo vai ter uma absorção fluente sobre aquilo que você está escrevendo, e essa não é a ideia. Eu até gosto de saber que não sou compreensível para todo mundo

    Djavan, sobre a fama de compositor hermético
Essa afinidade com as paradas de sucesso é questão de sorte?

Acho que é um milagre eu não ser um artista com uma música exatamente popular e ainda assim ter conseguido me transformar em um artista popular. Eu não consigo explicar bem como sou tão popular nos bares e nas rádios, como os artistas sertanejos. Não consigo compreender estar mais de 25 anos entre os dez que mais arrecadam direitos autorais.

Muitos desses sucessos, com o passar do tempo, criaram uma mitologia em torno do compositor Djavan. Você acabou adquirindo a fama de incompreendido por versos como “Açaí, guardiã / Zum de besouro um ímã / Branca é a tez da manhã” (“Açaí”).

Minha música causou estranheza para alguns produtores no início. Minha letra é pessoal e advém de quem canta, compõe e tem uma harmonização diferente.  Agora temos aí 236 letras para quem quiser se debruçar e fazer a própria análise. Acho que as pessoas estão compreendendo, cada vez mais, o que é uma letra de música. A poesia tem esse papel, de fazer com que as pessoas pensem. É impossível você pensar que todo o mundo vai ter uma absorção fluente sobre aquilo que você está escrevendo, e essa não é a ideia. Eu até gosto de saber que não sou compreensível para todo o mundo. Eu sei que isso, com o tempo, vai mudar. Porque todo o mundo muda, todo o mundo cresce, se amplia, ou não. Eu adoro que seja assim.

Faz parte da graça?

É claro. Se existe [esse papo de incompreensível], acho, antes de qualquer coisa, engraçado (risos). Eu faço sucesso desde que comecei a carreira. Que incompreensão é essa? É um paradoxo que precisa de uma análise.

Engraçado que a versão de “Navio” para o inglês (“Bird of Paradise”, destaque no disco de raridades em inglês e espanhol ) é completamente diferente da original.

Minha letra é muito específica que para ter uma tradução. É uma coisa muito difícil.

Durante uma época, houve o esforço da gravadora em lançá-lo em mercado internacional. Você, porém, não concordou quando a proposta era morar nos Estados Unidos. Você não tinha interesse?

Sempre tive esse desejo de tocar em todos os lugares do mundo, mas em português. Eu sempre achei vantajoso, gostoso, cantar em português. É a língua mais musical, é a língua que eu amo. Foi uma das razões de não querer ir para os Estados Unidos, não queria deixar de conviver com essa cultura.

Essa caixa revela o apreço de grandes artistas mundiais pela sua música. Tem aí a participação do Stevie Wonder, George Duke, Paco de Lucía.  No Brasil, você é um ídolo para o Racionais MC’s, que voltou a citá-lo no novo disco.

Eu vi. Eu gosto, mas ainda não tenho contato com o Mano Brown. Isso vai acontecer em algum momento, porque eu acho muito importante todas essas tendências estarem ligadas num trabalho que, por si só, distribui pontas de ligação para tudo que é lado. É o pessoal do axé, do rap, do rock. A música brasileira sofre, no bom sentido, uma perseguição de todos os músicos do mundo. Stevie Wonder ouviu muita música brasileira. Na minha formação, sempre priorizei a diversidade porque queria mexer com vários gêneros. Sempre ouvi de tudo, música italiana, flamenca, francesa, americana, sobretudo a black music. Essas pessoas vieram com essa curiosidade. Foi sempre assim que minha música foi buscada e continua sendo.

A Lei das Biografias está prestes a ser discutida no Senado, após um ano em que você e outros artistas defenderam a autorização prévia. Após esse tempo, sua posição continua a mesma?

A minha posição com relação à biografia era uma ação solidária do grupo. Todos sabiam a posição de todos, e a minha sempre foi completamente a favor das biografias não autorizadas. Eu acho um horror você viver em um país onde elas não são possíveis. É importante que você não dependa da opinião oficial para nada. Isso ratifica a democracia.