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Rapper gay, Rico Dalasam quer unir orgulho negro e LGBT na "ferveção"

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

19/01/2015 11h36

Rico Dalasam não passa despercebido na periferia de Taboão da Serra, cidade da região metropolitana de São Paulo, lugar onde nasceu e se criou. Com o cabelo escovado, blusa verde flúor e saia tipo kilt, ele contrasta com os tijolos das casas de alvenaria e com homens que bebem cerveja em um bar, em uma rua sem saída no bairro Cidade Intercap, em um típico e quente dia de verão. "O pessoal fica assim olhando, 'quem é esse louco?'. Até alguém comentar: 'é filho da dona Ana. É daqui mesmo. Ele é assim'", comenta, em entrevista ao UOL.

Gay, o rapper de 25 anos quer aproveitar o momento em que o gênero se permite ser mais festivo para alcançar o que chama de "business". Representante do movimento "queer rap" (termo que pode ser traduzido como "rap gay"), que já soma representantes nos Estados Unidos e ainda dá os primeiros passos no Brasil, ele planeja uma carreira “profissional”: aliar seu visual com uma marca, montar sua própria festa e "dar entrevista para Marília Gabriela". "A gente achava incrível quando via um negro no Raul Gil", diz ele, lembrando da infância.

Rico passou pelas famosas batalhas de MCs do metrô Santa Cruz, na zona sul de São Paulo, em uma época em que Rashid, Projota e Emicida ainda estavam no "mesmo rolê". Porém, no lugar das rimas fortes em tom de denúncia -- como faziam os Racionais MC’s na época em que ouviu "Homem na Estrada" pela primeira vez, aos quatro anos de idade --, Rico cai na "ferveção" e versa sobre aceitação, gêneros e relacionamentos. "Boy, eu quero ser seu man", ele canta em "Aceite-C", que usa como base um irresistível sample de "O Mais Belo dos Belos", de Daniela Mercury. A música é o primeiro single do EP "Modo Diverso", que deve cair na internet ainda este mês. "Não tem jeito. Protesto gay é fervo", observa.

A letra confessional de "Não Posso Esperar", sobre a aceitação da própria sexualidade e as primeiras paixões, guarda certo teor político. Mesmo com festa, ele quer reunir dois movimentos que, na sua concepção, andavam desunidos: o negro e o gay. Já tem até nome para o próximo trabalho: "Orgunga" -- junção de orgulho negro e gay.

"Em alguma época, no período da ditadura, havia uma relação forte do movimento LGBT com o movimento negro. E daí veio o pajubá, que é esse dialeto usado pelos gays, que tem essa coisa do iorubá [língua nígero-congolesa] misturada com o próprio movimento gay. É uma coisa que se perdeu e que podia estar mais avançada", observa.

Rico sobre gays no rap

  • Tem 'muita gay' que vai a shows de rap. Ela gosta, tem o CD, ela se sente parte daquilo, apesar da rejeição. Ela consome aquele entretenimento e vai embora

"Ousado, né?"
Rico enfrenta com "carão" uma segregação velada, mas ainda tabu dentro do rap, que muitas vezes delimitou homens e mulheres de uma maneira estereotipada. Entre o pajubá e a linguagem da quebrada, ele diz que a realidade é outra. "Tem 'muita gay' que vai a shows de rap. Ela gosta, tem o CD, ela se sente parte daquilo, apesar da rejeição. Ela consome aquele entretenimento e vai embora."

Para ele, o hip-hop precisa invadir espaços e fazer valer um de seus preceitos: o de igualdade. "O próximo estágio é estar todo o mundo ali no mesmo espaço, casais, todo o mundo convivendo por uma visão maior. O hip-hop é bem mais."

Em agosto do ano passado, Rico se apresentou na abertura do show de 25 anos dos Racionais em Belo Horizonte, para uma plateia que o desconhecia completamente. O público se animou. Nos bastidores, o cumprimento foi protocolar.

Mano Brown já assistiu ao colorido e dançante clipe de "Aceite-C" (assista aqui). "Ousado, né?", teria dito ele, lacônico, segundo relatos de amigos. "Mas você vê que não é neguinho" –na quebrada, o termo "neguinho" define quem quer ser algo que não é. "O rap e a igreja são parecidos. Eles sabem (da sua sexualidade), mas não comentam", observa Rico.

Da igreja à escova no cabelo
Quando criança, Rico entrou para a igreja evangélica com a mesma dedicação que hoje presta à carreira. "Fui subindo de cargos na igreja, tá ligado? Fui arrastando todos meus amigos para lá. Mas depois de quatro anos, eu percebi que não daria mais. O próximo passo era casar. Aí não dava."

A mãe, Ana Célia, interrompe: "Ele merece tudo do melhor. Nunca deu trabalho". Exceto, lembra ela, quando foi chamada com urgência na escola. O filho tinha acabado de socar o nariz de um aluno. Era um rapaz que fazia questão de chutar a bola para acertá-lo. Com medo das agressões se tornarem mais sérias, Rico mirou seu murro no nariz do algoz. "Era ele ou eu", comenta hoje. Já o pai ele não vê há 20 anos. Não sabe nem por onde anda.

Rico

  • Reinaldo Canato/UOL

    Eu ficava com o pessoal do bairro e aí todo mundo se parece, todo mundo é negro, mais escuro, mais claro, todo mundo é pobre. Isso mexe quando você sai do bairro e vai para São Paulo. Foi quando eu senti essa estigma do racismo, da dona segurar a bolsa, o segurança da loja ficar de olho

Vendendo coxinhas na rua, a mãe conseguiu colocar o caçula de quatro filhos em um colégio particular. Rico parou de estudar e perdeu o interesse. Fazia de tudo para sair de lá. Sentia o racismo no olhar dos alunos. Era o único negro. A realidade ajudava a construir sua consciência. "Eu ficava com o pessoal do bairro e aí todo o mundo se parece, todo o mundo é negro, mais escuro, mais claro, todo o mundo é pobre. Isso mexe quando você sai do bairro e vai para São Paulo. Foi quando eu senti essa estigma do racismo, da dona segurar a bolsa, o segurança da loja ficar de olho." 

Para fugir da "atmosfera de pequenos furtos" que já rondava a vizinhança, como descreve, deu vazão a um prazer: ganhava uns trocados fazendo penteados e tranças. Após estudar moda e audiovisual, meteu as caras no mercado editorial e trabalha até hoje como produtor de moda. 

Nas rinhas de MCs, começou a desenvolver a própria imagem. O cabelo sempre esvoaçante guarda inspiração em Little Richard, Andre 3000 e Prince. A estética, para ele, é tão importante quanto os versos. "Hoje estão começando a ver a real dimensão que o hip-hop tem", prega.