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"Não faz sentido filho de Elis censurar biógrafo", diz João Marcelo Bôscoli

Caricatura da cantora Elis Regina (1945-1982), que completaria 70 anos em 2015 - Bruno Hamzagic/Divulgação
Caricatura da cantora Elis Regina (1945-1982), que completaria 70 anos em 2015 Imagem: Bruno Hamzagic/Divulgação

Ronaldo Evangelista

Do UOL, em São Paulo

11/03/2015 06h00

Entre a espontaneidade e o rigor, Elis Regina foi uma cantora como nenhuma outra. Técnica apurada e emoção transbordada, caminhando juntas a serviço de grandes interpretações, faziam cada canção cantada por ela se transformar em um evento único, cada lançamento seu se escrevendo na história.

Na próxima terça-feira, dia 17 de março, a memória de Elis segue viva como nunca, enquanto celebra-se a efeméride das sete décadas de seu nascimento, e cinco décadas do começo de sua carreira “oficial”, no Rio de Janeiro, depois de um começo juvenil em sua Porto Alegre natal.

Uma nova biografia da cantora está sendo lançada, saborosa e apurada como ainda não havia: “Nada Será Como Antes”, do jornalista Julio Maria. Em tom de longa reportagem, o autor monta um quebra-cabeças da vida e obra de Elis, contando histórias, explicando seus caminhos e descaminhos na cultura brasileira, evoluindo musicalmente junto à cantora.  

Os filhos não fizeram objeção alguma ao teor da obra, e João Marcelo Bôscoli, o mais velho, conta o motivo: “Essa coisa da pré-autorização… Achei que essa era uma discussão que já tinha passado no nosso aprendizado como sociedade. Pré-autorização tem nome, né? Censura. Quando me dizem 'parabéns pela postura', eu aceito, claro, mas não vejo sentido. Porque qual seria o contrário, ter pré-autorização? Como é que pode o filho de jornalista, filho de compositor, filho de cantora que teve um monte de problema com censura… Censurando? Não faz sentido, eu não acredito nisso.”

O aniversário de 70 anos de Elis também marca o lançamento de um site oficial, www.elisregina.com.br, compilando todo o material da exposição “Viva Elis”, realizada em 2013, somado ao material inédito que inclui mais de 500 fotos, áudios, textos, vídeos. Também estão no alvo planos para um longa-metragem e uma minissérie sobre Elis, além de relançamento em versão remixada e remasterizada do clássico álbum de 1972 ao lado de Cesar Camargo Mariano, “Elis Regina”.

A força de Elis vinha da consciência que exercia de que faria tudo para ser a melhor, e fazia, e era. A partir da influência que sofria de cantoras como Ângela Maria, somou a isso um modernizado senso sinatreano impingido pela convivência com Miéle e Bôscoli, abraçou a variedade estilística para além de movimentos e cenas, e reforçou seu amor pela música brasileira, aproveitando o timing histórico da fértil época em que vivia para exercitar seu talento para encontrar boas músicas e lançar grandes compositores.

Dotada de um humor franco e abusado, que vazava para as ousadias artísticas, possuía uma desenvolvida consciência musical, de forte senso melódico e harmônico, utilizando a voz com a mesma naturalidade de um instrumentista virtuoso, entendendo a força da simplicidade e ao mesmo tempo com gosto pelas complicações, armadilhas, floreios e invulgaridades musicais.

“No fundo, a cabeça dela era de um músico, não de uma cantora”, observa Julio Maria, em conversa com o UOL. “O jeito que ela pensava música mesmo. Imagina, uma mulher que não estudou música ter noção de harmonia, de dizer ‘olha, esse acorde está bom, mas põe mais uma notinha’. Aí ia ver era uma décima-terceira aumentada. Ela impressionava todos os músicos que tocavam com ela.”

Elis Regina chegou ao século 21 reconhecida mundialmente, unanimemente citada por jazzistas, músicos de todos os gêneros, novas cantoras, fãs da sigla MPB e possuidores de ouvidos em geral, aptos a reconhecer sua facilidade de brincar com a música, seu timbre perfeito e a técnica depurada desde criança em rádios, discos, clubes, teatros pelo Brasil e além.

Embalando tudo, aquela personalidade. Não era à toa o apelido de “Pimentinha” que lhe havia sido cunhado por Vinicius de Moraes. De personalidade forte, temperamental, competitiva, Elis chegou como um trator na música brasileira, e não apenas por sua voz, como fica claro em muitas histórias contadas no novo livro. Sem poupar momentos íntimos com maridos, namorados e rivais, mas sem cair em moralismos rasos, a biografia de Julio Maria respeitosamente entrega a personagem cheia de altos e baixos, amores e desafetos, carinhos e desprezos.

João Marcelo

  • Alexandre Schneider/UOL

    Agora, essa coisa da pré-autorização? Achei que essa era uma discussão que já tinha passado, no nosso aprendizado como sociedade. Pré-autorização tem nome, né? Censura. Como é que pode o filho de jornalista, filho de compositor, filho de cantora que teve um monte de problema com censura? Censurando? Não faz sentido, eu não acredito nisso

    João Marcelo Bôscoli, cantor e filho de Elis explicando por que não teve objeções à biografia da mãe

“O Ronaldo Bôscoli xingava ela de ciclotímica, que é exatamente a mesma coisa que o que depois virou moda com o termo bipolaridade”, conta Julio Maria.

“O humor dela realmente era sujeito a chuvas e trovoadas. Ela não gostava de ser contrariada. Também porque quem mandava na carreira dela era ela. Então naturalmente havia atritos com diretores de gravadora, produtores, gente que queria opinar na carreira. Por outro lado, ela tinha um antiglamour: levava os filhos na escola, não fazia questão de camarim, tinha um relacionamento com os músicos de muito respeito e valorização. Ela era antidiva.”

O livro também apresenta muitos novos detalhes sobre a triste morte de Elis, em janeiro de 1982, sozinha, trancada no quarto de seu apartamento na rua Melo Alves, no Jardins, em São Paulo, do que se concluiu ter sido overdose acidental de cocaína diluída em álcool.

Tocante, o livro ajuda a construir a figura humana, com tantos defeitos e qualidades quanto todo ser humano, e acaba revelando a intensidade, emoção e entrega que só aumentam a artista. Em momento de sérias perseguições à autonomia de biógrafos, Julio Maria elogia o respeito que a obra recebeu dos herdeiros, incluindo João Marcello, Pedro e Maria Rita nos agradecimentos do livro, “por acreditarem que a história só poderia ser contada com liberdade”.

“Eu não vejo outra maneira”, comentou João Marcelo, em conversa por telefone. “A Elis é uma pessoa pública, que se relacionou com pessoas públicas, e muitas das histórias são públicas. O cara vai escrever um livro, o problema é dele. É o nome dele, quem tá com a bomba no colo é ele, quem tá escrevendo sobre a Elis Regina é ele, não sou eu. Se eu não gostar, eu faço outro, eu escrevo uma, ou encomendo uma, ou processo ele, qualquer coisa.”

Além da questão política, João Marcello conta ter se emocionado com o livro. “É uma leitura em si bacana, mas é também repleta de significados. Você acaba tendo vontade de falar, ‘meu, vou ali fora e vou fazer o que acho que tem que ser feito’. O legal da Elis é que você sente vontade de ser você mesmo, mesmo. De fazer o que você acredita. Uma vez ela me falou: ‘Cara, se eu tivesse uma outra vida, eu vivia essa outra vida que querem que eu viva, mas eu só tenho uma, e vou viver do jeito que eu quero. Eu não vou ser outra pessoa para agradar os outros’. E não tem nenhuma agressividade nisso. É fazer, é ser convicto, é colocar energia nas coisas em que crê, é não ter vergonha de mudar de ideia. Com todas suas qualidades e defeitos, ela era humana pra cacete, né? Bom demais, nós somos isso”, ri ele.

Setenta anos depois de seu nascimento, 50 depois de seu começo, mais de 30 depois de sua morte, Elis Regina continua reinando como a grande voz no país das cantoras, presente como se não tivesse ido embora um dia sequer. Sua memória continua viva - e não só por ter sido tema do recente samba-enredo da Vai-Vai, campeão do Carnaval em São Paulo, ou pelo sucesso do espetáculo “Elis, a musical” -, mas por sua música e por sua voz, que definiram uma época que perdura até hoje.

“Nunca entrei numa loja de discos no mundo, física ou digital, que não tivesse os discos da Elis”, nota João Marcelo. “Como filho, eu fico muito feliz dela, 33 anos depois de ter morrido, ser uma pessoa que tem uma obra presente - e por decisão natural da sociedade.”