Em igreja nos EUA, gênio do jazz é santo e seu álbum clássico vira bíblia
Durante uma entrevista em Tóquio, em 9 de julho de 1966, o saxofonista John Coltrane foi indagado sobre o que ele gostaria de ser dali a dez ou 20 anos. “Um santo”, respondeu. Um dos maiores nomes da história do jazz, Coltrane realizava na época uma busca espiritual e estava limpo do vício em heroína. Essa fase tivera início um ano antes, quando compôs o álbum “A Love Supreme” [“Um Amor Supremo”, em português]. Com 50 anos recém-completados, o disco instrumental é uma das obras máximas do gênero, objeto de adoração entre críticos e estudiosos do estilo. Mas fora isso, para uma pequena igreja escondida em San Francisco, na Califórnia, é, literalmente, uma bíblia.
Trata-se da Igreja Africana Ortodoxa de São John William Coltrane, na Fillmore street. Lá, o músico é mostrado em uma tela grande, devidamente santificado: na mão direita, ele segura uma escritura, na esquerda, seu sax, de onde saem chamas divinas.
“Segundo o depoimento de John Coltrane no encarte de ‘A Love Supreme’, o álbum foi concebido como uma reafirmação da fé. É uma pedra angular de nossa adoração a São John”, explica o reverendo Max Haqq, da Igreja de São John Coltrane, por e-mail ao UOL.
O Moisés do jazz
Fortemente influenciado por religiões africanas, indianas e até pelo candomblé, “A Love Supreme” é uma obra com pouco mais de 30 minutos, divididos em quatro temas: "Acknowledgement”, “Resolution”, “Pursuance” e “Psalm” (em português: “Reconhecimento”, "Resolução", "Busca" e "Salmo").
Na leitura que o reverendo Haqq faz de cada faixa do disco, a obra-prima do saxofonista “é uma fórmula para o alcance espiritual". "É o reconhecimento de Deus, a resolução em dedicar nossas vidas ao serviço de Deus e ao povo de Deus, a busca por tudo isso até o fim. E a alegria e a oração do Salmo para elevar-nos ao estado do amor supremo”, define.
Diz a lenda que a sequência de composições do álbum apareceu de uma vez na cabeça de Coltrane. Sua mulher, Alice Coltrane, relembrou o episódio em um depoimento no livro "A Love Supreme - A Criação do Álbum Clássico de John Coltrane", de Ashley Kahn. “[Ele] parecia Moisés descendo da montanha, foi lindo. Ele desceu, e havia uma alegria, uma paz em seu rosto, uma tranquilidade. Eu disse: ‘conte-me tudo, faz uns quatro ou cinco dias que a gente nem se vê…’. Ele respondeu: ‘Esta é a primeira vez em que me veio toda a música que quero gravar, como uma suíte [sequência de composições instrumentais]. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto’.”
Com o pianista McCoy Tyner, o contrabaixista Jimmy Garrison e o baterista Elvin Jones, Coltrane gravou o álbum em menos de uma semana, em Nova Jersey, criando uma linguagem nova no jazz, rompendo fronteiras do free-jazz e expressando sua gratidão a deus em cada frenética sequência de notas.
Enquanto a primeira parte do disco é uma espécie de mantra, em “Psalm” o sax tenor de Coltrane fraseia um poema de adoração publicado no encarte. Pode ser difícil para ouvidos não afeiçoados ao jazz, mas o reverendo acredita: "A música de nosso santo tem o poder de facilitar a compreensão da religião e o contato com Deus”.
Batismo ou exorcismo
“A Love Supreme” ganhou a dimensão religiosa em 1969, dois anos depois da morte prematura do músico, em decorrência de câncer no fígado. O grupo de adoradores inicialmente surgiu apenas como uma comunidade religiosa, sendo incorporado à religião africana em 1982, quando Coltrane foi canonizado por ela.
Como todo santo, São Coltrane tem uma função específica. “Ele é padroeiro de todos os artistas, todos que buscam criatividade, e ajuda para superar vícios”, explica Haqq. Os rituais são celebrados com a música de Coltrane, em "jam sessions" no altar de dar inveja a qualquer clube de jazz. A música ao vivo tem um papel fundamental, que é conhecido naquela igreja de duas maneiras, dependendo do objetivo do ritual: "exorcismo" ou "batismo" do som.
“Muitas vezes estamos sobrecarregados por 'espíritos ameaçadores', e a música tem o poder de nos aliviar e nos libertar. Outras vezes é uma celebração, um batismo em som, em que nos alegramos”, explica Haqq.
Membro da Igreja de São John Coltrane desde 1991, Haqq enxerga a música de Coltrane como um facilitador da fé, um ritual próprio, e não uma ferramenta para angariar novos fiéis. “Isso toca em uma crença profundamente enraizada no poder místico do som e da música”, comenta. “Consideramos que a música de São John é o som ungido que saltou do trono do céu, direto da própria mente de Deus, e encarnada em John William Coltrane.”
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