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Para além do "Exagerado": os álbuns-solo de Cazuza de 1985 a 1989

Giselle de Almeida

Do UOL, no Rio

12/06/2015 07h08

Depois do sucesso de “Exagerado”, Cazuza lançou outros quatro discos em sua fase solo. O segundo, “Só Se For a Dois”, em março de 1987, pela Polygram. Com produção de Ezequiel Neves e de Jorge “Gordo” Guimarães. Embora a música de trabalho, “Vai à Luta”, não tenha tido tanta repercussão, “O Nosso Amor a Gente Inventa (Uma Estória Romântica)” e “Solidão Que Nada” se transformaram em hits e ajudaram a dar uma cara romântica ao álbum.

A faixa-título nasceu praticamente no estúdio, como lembra o guitarrista Rogério Meanda, parceiro de Cazuza na composição. Ele conta que tocava a melodia num dos ensaios quando chamou a atenção do letrista. “Ele chegou já com o microfone, uma coisa meio repentista, ‘Aos gurus da Índia...’. Setenta por cento da música já ficou resolvida ali. Acabou virando o nome do disco, um dos maiores orgulhos da minha carreira”, afirma o músico.

Definindo-se como letrista bissexto, o guitarrista ressalta a habilidade do intérprete. “Você não imagina como é difícil fazer uma letra bonita, com imagens bonitas, que sincronizem com a melodia. Lembrando como o Cazuza fazia isso bem, não é à toa que é quem é, foi quem foi e será sempre”, diz o guitarrista.

Talvez o disco mais celebrado de Cazuza, “Ideologia”, de 1988, foi concebido quando a Aids virou uma certeza na vida do cantor. No ano anterior, logo após a turnê de “Só se For a Dois” e a confirmação de que era soropositivo, o cantor fez sua primeira viagem a Boston, nos Estados Unidos, para se tratar com mais recursos. Assim que retornou ao Brasil, procurou o baixista Nilo Romero: queria voltar ao batente.

Nilo Romero, baixista que gravou o álbum "Ideologia"

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    Em 15 minutos lá, conversando com ele, eu esquecia que ele estava doente, de tão comprometido.

    Nilo Romero, baixista que gravou o álbum "Ideologia"
“Ele estava magrinho, fiz tudo para não demonstrar. Mas ele não era bobo. Dei um abração nele, e ele falou: ‘Quero que você produza o próximo disco junto comigo e com o Ezequiel’. Já cheio de ideias. Em 15 minutos lá, conversando com ele, eu esquecia que ele estava doente, de tão comprometido”, lembra Romero.

Em “Boas Novas”, ele dizia: “Senhoras e senhores / trago boas novas / eu vi a cara da morte / e ela estava viva”. Mas a língua estava afiada como nunca também em músicas como “Blues da Piedade”. “Ele sempre expôs os pensamentos dele nas músicas. Nessa genialidade dele, o tempo todo ele estava vendo o falso puritanismo, essa babaquice que existe até hoje, que é inerente do ser humano”, diz Sandra de Sá, comadre de Cazuza, que emprestou suas backing vocals para a gravação original, além de incluir a canção em seu disco “Lucky!”, em 1991.

Além de sucessos como “Um Trem para as Estrelas” e “Faz Parte do Meu Show”, o álbum continha ainda “Brasil”. Autores da melodia, George Israel e Nilo Romero se surpreenderam ao receber de volta a letra ácida, mas não imaginavam o desdobramento que a canção teria depois de virar tema de abertura de “Vale Tudo”, na voz de Gal Costa. Mas havia alguém que acreditava nesse potencial desde o início. “Lembro que o Zeca (o produtor Ezequiel Neves) foi lá em casa e falou: ‘Isso é um hino, garotinho’. E ele estava certíssimo. Era um cara de uma percepção absurda. Só atinei pra importância da música quando ele falou isso”, afirma Israel.

Batizado de “O Tempo Não Para”, o show do disco “Ideologia” virou o quarto álbum solo de Cazuza. Gravado em outubro de 1988 no Canecão, no Rio de Janeiro, o disco ao vivo tinha sucessos da fase solo do cantor, “Todo Amor que Houver Nessa Vida”, do repertório do Barão, "Vida Louca Vida”, de Bernardo Vilhena e Lobão, além da música nova, que dava nome à turnê.

Cazuza no show "O Tempo Não Para", no Canecão, em 1988 - Reprodução - Reprodução
"A gente abria o show com ele cantando 'Vida Louca Vida', muito convicto, e já convencia. Pedi pra ele não se gastar, pra ele cantar apenas", conta Ney Matogrosso sobre a turnê "O Tempo Não Para"
Imagem: Reprodução
O show tornou-se um marco: revelou um Cazuza mais sereno no palco e um intérprete ainda melhor. O cuidado, em parte, era por seu estado já um pouco debilitado; mas o que poderia ser uma fraqueza que ganhou força cênica com a direção de Ney Matogrosso. “A gente abria o show com ele cantando ‘Vida Louca Vida’, muito convicto, e já convencia. Pedi pra ele não se gastar, pra ele cantar apenas. E ele entendeu. Se você fica menos cansado, se não está pulando pra lá e pra cá, você canta melhor. Tem mais controle”, afirma Ney.

O registro em disco tornou-se ainda mais importante porque esta viria a ser a última turnê do artista. A estreia, em São Paulo, foi uma prova de fogo. “Ninguém sabia se ele ia conseguir fazer algum show. ’Ideologia’ estava tocando na rádio. Estreamos no Aeroanta, uma casinha pequena. Fizemos quinta, sexta e sábado. Não íamos fazer domingo, mas foi um sucesso, ele se sentiu bem. Fez quatro shows seguidos, aquilo foi a deixa pra dizer que ele ia conseguir fazer”, lembra Romero.

Embora fisicamente estivesse mais frágil, Cazuza encarava a fase com outros olhos. “’Ideologia’ é um disco muito triste. ‘O Tempo Não Para’ é o fim desta fase. Parei de reclamar. Estou pronto pra cantar o simples prazer de estar vivo”, declarou o cantor, em entrevista ao “Jornal do Brasil”, em janeiro de 1989.

Em abril de 1989, Cazuza entrava em estúdio pela última vez para gravar "Burguesia". Com a cabeça fervilhando de ideias, decidiu fazer um álbum duplo e selecionou 20 músicas, divididas em um lado mais rock e outro mais MPB. À faixa-título, com seu tom mais crítico, uniu uma música em homenagem ao avô (“Nabucodonosor”) e gravações de Paralamas do Sucesso (“Quase um Segundo”) e Caetano Veloso (“Esse Cara”).

Bastante enfraquecido e com a voz mais falhada, gravou algumas músicas deitado em um sofá. “Era um guerreiro, sabia que a melhor coisa que ele tinha a fazer era cantar. Foi fazer o disco e passou a se preocupar com isso: acordar, ir para o estúdio. Foi ocupando os dias dele e fez coisas belíssimas também”, analisa Nilo Romero. 

Parceiro em três canções do álbum, George Israel diz que ficou admirado com a resistência do cantor nesse período. “Ele tinha uma urgência, as músicas eram feitas muito rápido, de um dia pro outro ia pro outro, no estúdio, ele aprendia na hora. Era um momento triste, quando você sente que está no fim, e, ao mesmo tempo, impressionante. Naquele estágio avançado, conseguir ter energia pra gravar me impressionou muito”, lembra o músico.

"Cobaias de Deus", parceria com Angela Ro Ro, rendeu à dupla um Prêmio Sharp póstumo de melhor música na categoria pop rock. “Uma vez perguntei pra ele, pelo telefone: ‘O negócio está brabo mesmo, né?’. A resposta veio na letra: ‘Se você quer saber como eu me sinto, vá a um laboratório ou um labirinto’. Ele direcionou tudo para o trabalho, nunca o vi tão dedicado. A obra dele mudou pra ainda melhor”, afirma a cantora.