Gangsta que invadiu cinemas americanos também moldou o rap brasileiro
Não teve Tom Cruise em “Missão Impossível” que conseguisse segurar a surpreendente bilheteria de “Straight Outta Compton - A História do N.W.A.” nos cinemas americanos. Cinebiografia do grupo de rap estadunidense N.W.A., o filme custou US$ 29 milhões e era tratado pelos magnatas de Hollywood como algo menor, até desbancar os blockbusters do verão americano e arrecadar US$ 111 milhões em apenas duas semanas.
A falta de visão da indústria tinha um motivo: o filme é sobre o N.W.A., mas também sobre a cena do Gangsta Rap, cujo objetivo é claro e direto: atacar o sistema (e principalmente a polícia) com letras violentas sobre a realidade na periferia e discursos combativos. Soa familiar?
Liderado pelo Eazy E, Dr. Dre, DJ Yella, Ice Cube e MC Ren, o N.W.A. foi o principal porta-voz do Gangsta no final dos anos 1980, ao lado de Ice-T, e mais tarde Tupac e Snoop Dogg. A filosofia se espalhou para além da fronteira e ajudou na gestação do rap brasileiro, influenciando grupos como Racionais MC’s, Facção Central, Câmbio Negro, Face da Morte, Sabotage, 509-E, Pavilhão 9. “O Gangsta é a maior referência que temos no rap nacional. É algo muito forte”, observa Rodrigo Brandão, MC do grupo Mamelo Sound System e ex-apresentador do “Yo! MTV Raps”, um dos primeiros programas dedicados ao rap no Brasil.
Com 25 anos de carreira, o rapper Dexter é citado até hoje como representante do movimento. “Gangsta aqui é o cara que teve ligação com a prisão ou que teve ligação de verdade com a rua de terra mesmo, com as favelas. É o cara que fala de tudo isso e está em tudo isso. É o cara que canta contra esse sistema”, explica. Ex-integrante do 509-E, grupo criado por detentos do Carandiru, o rapper afirma que o gangsta investiga o submundo e usa as rimas como arma. “Não é necessariamente pesado na batida, mas sim nas ideias.”
Dexter
Gangsta aqui é o cara que teve ligação com a prisão ou que teve ligação de verdade com a rua de terra mesmo, com as favelas. É o cara que fala de tudo isso e está em tudo isso. É o cara que canta contra esse sistema
Sem apoio nem da MTV, as ideias do N.W.A. se tornaram hinos de forma espontânea e que ressoam ainda hoje, em um momento em que os Estados Unidos se vê em torno da discussão sobre racismo e a repressão policial.
“Enquanto o Public Enemy [outra referência do rap brasileiro] pregava a consciência, o N.W.A. tinha um lance da rua, era uma luta armada, era uma coisa do Partido dos Panteras Negras”, Rodrigo recorda.
A imprensa americana noticiou que a polícia estava alerta para possíveis revoltas com a estreia de “Straight Outta Compton”, programado para estrear no Brasil em 29 de outubro. Acabou encontrando apenas longas filas nos cinemas
Sujeito engajado
Pesquisador e doutorando em história social da Universidade Federal de Uberlândia, Roberto Camargos estudou o que chama de “construção do sujeito engajado” no rap brasileiro em seu livro “Rap e Política”, lançado recentemente pela Boitempo editora.
Esse engajamento próprio do Brasil encontrou no Gangsta sua melhor expressão. Em “Capítulo 4 Versículo 3” e “Eu Sou 157” dos Racionais, por exemplo, há um discurso forte sobre a realidade através de histórias de ladrões. Para quem acredita que os clássicos glamorizam a vida no crime, Camargos defende: “São portadoras de uma lição moral que prega a paz e a vida honesta do que qualquer outra coisa”, observa. “Falam do crime e da violência, mas têm um caráter pedagógico que termina por refutar tais práticas.”
A medida que a fama crescia e o dinheiro entrava, a filosofia do N.W.A. degringolou em uma série de abusos e briga de egos. Em entrevista a “Rolling Stone”, Mano Brown conta que no começo dos anos 1990, o Racionais começou a ficar mais violento. “Esperávamos o pior, que poderíamos cruzar com os nazis, os polícias. Tínhamos essa visão de trocar [tiros] com os polícias, de igual para igual. (...) Queríamos destruir a autoridade deles, e morreríamos por isso. Fazíamos reuniões nos banheiros dos bailes para tramar ações”, recordou o rapper.
Gangsta hoje
Hoje, o Gangsta Rap pode parecer distante da filosofia do N.W.A. Com o passar do tempo, o estilo se tornou mais hedonista, sexista e flertou com a ostentação. Criador do festival Hip-Hop indie, Rodrigo Brandão observa que apenas o glamour do gênero não chegou às terras aqui. “Nos anos 1980, tinha essa coisa de gostar de ser mal. Hoje em dia, eles gostam de ser ricos. A diferença é apenas uma: Nunca teve muito dinheiro no rap aqui no Brasil”, observa.
No Brasil, a cena ainda se mantém viva com veteranos como Eduardo, ex-Facção Central, Realidade Cruel e outros grupos como Voz D’Assalto, na baixada Santista.
Finalizando a produção de seu disco, com participações de Ed Motta e Péricles, Dexter observa que o rap de hoje – com a sonoridade e o público cada vez mais diversificado, como os trabalhos de Emicida e Criolo --, continua a tocar o dedo na feriada.
“Os tempos mudaram, não é só alegria, alegria. Diante disso, eu acho que a gente ainda fala do universo Gangsta. O rap é compromisso, e antes do Sabotage cantar, nós sabemos disso”.
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