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Escondidas sob palco de musicais, orquestras tocam ao vivo para ninguém ver

Luna D'Alama

Do UOL, em São Paulo

29/08/2015 07h00

Por trás de um grande musical há sempre um grande elenco. E embaixo dele, mais especificamente 2 metros sob o palco, há sempre quem carrega o piano, literalmente. No caso de "Mudança de Hábito", em cartaz em São Paulo, sete músicos e uma maestrina são responsáveis pelas 19 canções tocadas ao vivo no fosso durante as 2h30 de show. "Imaginei que o som sairia mais abafado [porque a orquestra está escondida], mas não. E, pela qualidade acústica, pensei que precisaria de um número maior de pessoas tocando", disse a fonoaudióloga Rita Leniza em entrevista ao UOL.

Há seis meses, pelo menos sete vezes por semana, o grupo de formação erudita --mas que toca samba, arrocha e até em rave-- se reúne no Teatro Renault, em São Paulo, para interpretar a versão brasileira da trilha da Broadway, inspirada em músicas soul, funk e disco. "Fizemos algumas adaptações, tivemos uma certa liberdade, até por conta das letras em português e do novo elenco. Mas o esqueleto da peça é americano, a gente respeita os andamentos, o desenho original", destaca a maestrina Vânia Pajares, que carrega o título de primeira mulher a reger um musical no país e esteve à frente das montagens de "O Rei Leão" e "A Família Addams".

Vânia, 47, é a diretora musical do espetáculo: ela comanda não apenas seus sete instrumentistas, mas todos os atores, com quem faz ensaios corporais e vocais antes de cada apresentação. "Preciso prestar atenção em dez coisas ao mesmo tempo. O andamento do musical depende de eu estar vendo o que acontece em cima e embaixo do palco. Por isso, acho que tem que ser uma mulher nessa função", defende a maestrina, que considera um elogio quando alguém sugere que as canções são playback. "Supor que o que fazemos ao vivo já estava gravado é sinal de que saiu tudo perfeito, bem redondinho. E, para os que sabem da existência da banda, há uma curiosidade muito grande sobre o que acontece no fosso. Sempre tem alguém que vai lá embaixo depois para parabenizar os músicos".

A diretora é também pianista e cantora lírica, e parece se divertir enquanto trabalha: canta todas as músicas, dança, segura a batuta e o compasso com a mão direita, enquanto com o braço esquerdo faz movimentos de expressão e emoção, e se comunica por um microfone com seus músicos, que a ouvem por fones de ouvido. Segundo ela, o que mais a incomoda dali do "pódio" são pessoas das primeiras fileiras que tossem, falam alto ou antecipam tudo o que vai acontecer nas cenas seguintes.

Um olho no peixe e outro no gato

Quando algo dá errado, é a regente quem precisa pensar rápido sobre como solucionar e não comprometer o andamento do show, a ponto de o público perceber a falha. "Os músicos estão sempre ligados, sabem quando tem algum problema, e nos comunicamos muito pelo olhar", diz a maestrina. Durante o espetáculo, ela aparece em um monitor instalado ao lado de cada integrante da banda e da equipe técnica do musical, para que todos possam acompanhar seus movimentos, comandos e reações --que podem ser desde a frase "Valar Morghulis" (uma referência à série "Game of Thrones") no início da apresentação ou o símbolo do heavy metal com as mãos ao final das canções até uma advertência para quem está fazendo barulho na coxia.

Parece estranho alguém tocar em um espetáculo sem vê-lo --dos sete músicos, quatro ainda nem assistiram à versão final, sentados na plateia, mas dali se ouvem todas as falas do elenco e se sentem os passos, as mudanças de cenário, os aplausos do público. Sem falar nos imprevistos: minutos antes do início do espetáculo que o UOL acompanhou, um funcionário da técnica correu para avisar a maestrina de que a Irmã Maria Roberta, interpretada pela atriz Ana Luiza Ferreira, seria substituída às pressas pela cover Giovanna Moreira, pois Ana Luiza estava com 38 graus de febre.

O único momento real de desespero que o grupo lembra de ter passado foi em abril, quando a mesa de som que comanda todo o musical ficou muda, inexplicavelmente, por "intermináveis" 4,5 segundos. "Foi no último número, quando a santa gira, aparece o papa, é o ápice do show. Os microfones sumiram, ficou tudo acústico, deu um frio na espinha. Foi uma eternidade, e voltou do nada. Acho que a energia das três freiras sentadas na plateia ajudou. Aí as pessoas realmente viram que é tudo feito ao vivo", conta Vânia. "É nessas horas que a gente ativa o modo 'olho de mangá'", brinca o percussionista Gilberto Rodrigues.

Orquestra real

Além de Giba, como ele é conhecido, a banda de "Mudança de Hábito" é composta por um guitarrista, um baixista, um baterista, um músico de sopro (que toca sax, clarinete e flauta transversal) e dois tecladistas, um deles substituto oficial de Vânia desde "O Rei Leão". É nos teclados que a trilha também ganha corpo, com uma orquestra virtual: deles saem sons de piano, órgão, harpa, cordas, metais, efeitos de vidros e tiros. "Só um dos tiros, quando o Curtis [Jackson, namorado da protagonista, Deloris Van Cartier] mata um cara, é que não sai daqui, mas da mesa de som principal", explica o tecladista João Candeloro, o segundo maestro do musical.

Outro integrante que chama atenção é o baterista Gustavo Ramanzini, que, além de estar no fosso, ainda fica isolado em uma espécie de aquário. O local é todo revestido com espuma, para que o som do instrumento não se perca, e ele lê as partituras direto de um tablet, ao contrário dos colegas, que ainda usam papel. "Como eu fico fechado nesse estúdio, não tenho sensação nenhuma de que estou tocando ao vivo, a não ser quando ouço os aplausos", revela ele.

Os ensaios da banda começaram um mês antes da estreia, em 5 de março, e duravam de três a seis horas por dia. Hoje, os músicos já sabem tudo de trás para frente, e tocam quase sem necessidade de olhar a partitura. "Mas jamais entramos no piloto automático", ressalta a regente. Cada um dos integrantes também conta com um substituto, em caso de imprevisto, e até os teclados têm um instrumento de backup, com todas as configurações de som do musical, caso os principais deem problema.

"Às vezes, o músico tem vontade de aparecer, sim, mas a gente entende que num espetáculo desses não tem como. Nos aplausos finais, é possível sentir a vibração, mas é diferente [de estar em cima do palco]", diz o tecladista Marcio Gomes, que já tocou em musicais como "Cazuza" e "Alô, Dolly", em locais mais à vista do público.