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Em "retiro" em MG, Arnaldo Baptista diz que "vivemos uma Idade do Fogo"

Jotabê Medeiros

Colaboração para o UOL, em São Paulo

17/11/2015 07h00

Mente mais convulsivamente criadora do rock nacional em todos os tempos, Arnaldo Dias Baptista vive aos 67 anos extremamente conectado em seu refúgio em Juiz de Fora, em Minas Gerais. Nada lhe escapa, a exemplo da tragédia com o rompimento da barragem na região de Mariana. "Falam que a água tem mais ferro agora que Hiroshima depois da bomba. São coisas que acontecem e ninguém entende a razão. Alguém tem que assumir, seja a mineradora, seja o governo, porque as pessoas estão sem habitação e morrendo de doença", disse o ex-líder dos Mutantes em conversa com o UOL.

O músico se prepara para vir a São Paulo mais uma vez, no final deste mês, lançar a caixa "Arnaldo Baptista" (Canal 3), que reúne pela primeira vez em CD (e em edição limitada) sua obra-solo --o material já tinha sido lançado em versão digital em 2013. A pré-venda começa nesta terça-feira (16), por R$ 119,90 nas redes de livrarias Cultura, Saraiva e Fnac. O box reúne toda a obra solo do lendário cérebro dos Mutantes, re-remasterizada pela Classic Master. São cinco discos: o clássico "Lóki?" (1974), "Elo Perdido +" (1977, lançado em 1988), "Faremos Uma Noitada Excelente" (1978), "Singin' Alone" (1982) e "Let it Bed" (2004), todos acrescidos de alguns mimos. 

O disco que Arnaldo fez com a Patrulha do Espaço em 1977, "Elo Perdido", por exemplo, chega relançado com cinco faixas adicionais jamais ouvidas em CD e com o novo título "Elo Perdido +". Arnaldo aproveitou para reparar algumas indelicadezas: na capa original de "Let it Bed", a presença da mulher do músico, Lucinha Barbosa, no fundo, havia sido apagada da foto de Fabiana Figueiredo. Agora, ela está de volta.

Nem tudo são flores nessa coisa de reunir obra completa. O disco "Let It Bed", por exemplo, produzido por John Ulhoa (Pato Fu) em 2004, teve de decepar uma música. "Woody Woodpecker - Everybody Thinks I'm Crazy", que utilizava canção-tema do desenho "Pica Pau", não conseguiu liberação para a edição e foi excluída da caixa, porque pediram "muito dinheiro pelo licenciamento".

Todo o disco "Singin' Alone" é comentado, faixa a faixa, pelo próprio Arnaldo, no encarte. Quando foi relançado em 1995 pela então Virgin/EMI, o álbum incorporou uma versão nova de "Balada do Louco". Na versão de agora, a voz na música é a de Arnaldo --nos Mutantes, era Sérgio Dias Baptista quem cantava a música.

Sonia Maia, coordenadora da edição, explicou que os registros de Arnaldo deixados de fora, como "Singin' Alone ao Vivo" (em 1981, no Tuca) e "Disco Voador" (gravado em apenas um canal pelo selo Baratos Afins, em 1987), foram excluídos da caixa por não terem um áudio de qualidade adequada para a edição em CD. Os desenhos e letras da arte da caixa são todos de Arnaldo Baptista, com design de Mariana Fonseca sobre foto clássica do artista em 1978, feita por Grace Lagôa.

UOL - Pode parecer absurdo perguntar isso, mas certamente seu disco solo favorito é mesmo "Lóki?" (1974)?

Arnaldo Baptista - Ótimo você perguntar. São tantos e diferentes approaches que não sei dizer um preferido. Mas acho que o "Singin' Alone" (1982) foi o disco no qual eu fui mais longe. Foi um disco muito ousado, no sentido de que não havia ninguém fazendo aquilo, e eu toquei todos os instrumentos. O "Lóki?" é muito bem acabado, funciona muito bem, eu adoro. Mas acho que é o "Singin' Alone" o meu preferido. É bacana lançarem todos os discos, porque é raro um artista ter todo seu trabalho solo disponível. O Elton John, que eu adoro, não tem.

E como foi essa história de que as músicas extras do disco "Elo Perdido +" (1977) foram trazidas numa fita cassete pelo baterista Koquinho (Oswaldo Gennari)?

Foi, a Lucinha [Barbosa, mulher] trouxe. A qualidade não era boa, mas saiu, isso que é importante. Hoje em dia, eles acham tanta raridade que nem lembro quando foi que gravei aquilo. Já aconteceu de eu reconhecer, mas é difícil. Teve a gravação de Paris, não lembro qual música que era [do disco "Tecnicolor", dos Mutantes]. Ela me mostrou um mini-cassete na casa do [artista visual, Antônio] Peticov. O que foi interessante nas gravações era o equipamento. Tinha órgão Hammond, phasing, tinha muita coisa que a gente não podia ter na época, porque era um investimento muito alto. O Carl Holmes, produtor, mostrou pra gente todos os estúdios, mostrou até como trabalhar uma música no estúdio dos Beatles.

Os Mutantes gravaram um disco referencial em Paris. Como você viu esses atentados lá?

Uma coisa doida. Falaram que o presidente teve de ser retirado do estádio, explodiram três bombas à noite. Ouvi dizer também que uma pessoa encontrou um piano de cauda na rua e tocou "Imagine", do John Lennon. Ficou interessante, tem tudo a ver, "Imagine" foi bem o retrato da vida do John Lennon. Eu tenho a impressão de que [a violência no mundo] é maior do que no passado. Eu tenho uma ligação muito forte em relação ao resto do mundo, e acho que vivemos uma Idade do Fogo. O homem não consegue a energia pelo sol, continua produzindo fumaça, poluição. O homem pode optar pela solução, ouvir um som melhor. Acho que tudo isso tem a ver com a relação da pessoa consigo mesma.

E o disco "Faremos Uma Noitada Excelente (1978)"...

É um apanhado da banda Patrulha do Espaço ao vivo. Tinha tanto show, e no meio de tudo, uma gravação que deu certo. Não importa o resultado, é importante porque registra um momento da carreira da Patrulha. Sim, havia elementos do blues rock inglês, mas era difícil dizer se vinha daqui ou dali. Ninguém entende a origem. O blues era americano, era de Saint Louis, e influenciava os ingleses. Eu entrei nessa coisa de blues mais por conta da solidão, da tristeza, foi quando estava no hospital. O blues para mim tinha uma coisa de Janis Joplin. No meio de tudo que era proibido na época, aquele blues era berrado, falava palavrão.

Muito da música que você fez com os Mutantes ou que fez em sua carreira solo é rotulada como psicodélica. Você concorda? Acha que é um músico psicodélico?

Interessante pergunta. A gente fica cavucando o lado interior e é assim que descobre algo relacionado ao psicodelismo. Quando eu fui estudar na Universidade Presbiteriana Mackenzie, consegui sintetizar algumas músicas. Mas é difícil, não consigo responder: isso é psicodélico? Isso não é psicodélico? Escuto as pessoas classificarem e não consigo dizer. Quando eu fiz aquelas canções, eu tinha a consciência de que não sou perfeito, então estava estudando para administrar essa imperfeição.

Nesses discos solo, existe uma canção que você possa dizer com convicção: "essa é psicodélica"?

Acho que "Emergindo da Ciência" é. Ela é muito profunda. A música psicodélica acontece quando há uma busca interior muito profunda, é resultado de um livre arbítrio, quando você admite todas as crenças, toda a fé, que a mente é totalmente sua e que pode ser compartilhada com muitas pessoas que estão sentindo a mesma coisa.

Você acha que seu trabalho solo é uma continuidade dos Mutantes ou é uma ruptura?

Eu tenho a impressão de que é uma espécie de ruptura. Os Mutantes alcançaram um resultado de comunicação excelente. Eu não atingi. Nos Mutantes, eu não tive a liberdade total, que eu acho que atingi quando comecei a tocar a bateria. E depois a guitarra. O "Singin' Alone" foi um exercício de liberdade total, e foi o primeiro em que eu fiz isso. Tentei e deu resultado.

Foi quando você se tornou one man band, certo?

Exatamente. Aquelas pessoas que pediam esmola nos faroestes e tocavam tudo, o bumbo, o sopro, a gaita. Na música também funciona.