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Amadurecimento do mercado musical permitiu parcerias inusitadas em 2015

Alexandre Matias

Colaboração para o UOL, em São Paulo

17/12/2015 18h10

Ivete Sangalo e Criolo juntos no mesmo palco cantando Tim Maia. Mano Brown em dueto com Naldo. Seu Jorge gravando com o Capital Inicial. Vanessa da Mata em uma música do Emicida. Gal Costa em uma música de Mallu Magalhães. O ano de 2015 assistiu a encontros e parcerias que, se cogitados há uma década, levantariam polêmicas, discussões e, possivelmente, rompimentos entre fãs. Felizmente a cultura brasileira evoluiu para além das tribos e rígidos gêneros que exigiam que os artistas ficassem presos a determinados estilos musicais.

A música popular também passou a soar cada vez mais misturada, nos fazendo questionar o que é sertanejo, o que é forró, o que é pagode, o que é arrocha, o que (ainda) é axé music ou o que é funk. Os duetos e parcerias são só um reflexo desta fusão musical. Em 2015, a música pop brasileira atravessa uma verdadeira ebulição de gêneros que torna os estilos originais indistinguíveis entre si.

"A música comercial tem uma característica de incorporar outros estilos de tal forma que continua prevalecendo uma única sonoridade, pelo tratamento sempre igual nos arranjos e produção", explica o produtor Pena Schmidt, hoje diretor do Centro Cultural São Paulo, avaliando as transformações musicais no atual mainstream brasileiro. "Tudo se transforma no que é identificado como sertanejo, que é um gênero hegemônico e que incorpora os outros e os dissolve em seu formato, que é basicamente cantado sempre por duplas."

O produtor Carlos Eduardo Miranda, que já produziu Raimundos e Skank e foi jurado do programa de TV "Ídolos", diz que essa fusão vai além da música. "Pode reparar, é sempre aquele cabelinho marshmallow, aquela roupinha ajeitadinha. Wesley Safadão e Lucas Lucco são a mesma coisa." Mas ele discorda que a fusão musical entre gêneros musicais seja uma característica deste ano. "Gêneros diferentes podem se misturar desde 1965", diz.

Miranda lembra que, no Brasil, toda a geração dos anos 1990 já era baseada nas fusões, as quais chamavam de "mistureba". Segundo ele, foi essa mistura de gêneros que fez bandas como Raimundos, Planet Hemp e Chico Science e Nação Zumbi conseguirem chamar atenção naquela década. "Eu sempre me envolvi em projetos assim, desde os anos 1980. Há uns dez anos, coloquei o Natiruts para tocar com o DJ Marlboro e muita gente dizia que reggae com funk era inviável, mas hoje o trap tá aí".

Para o produtor, a principal tendência de 2015, na verdade, é "homem usar barba de lenhador, coque de samurai e andar de bicicleta para comer no food truck". "O que realmente mudou foi o mercado. Novas frentes para a música se abriram. Há um ano ficavam zoando que a Tulipa e o Emicida não tinham público, que só tocavam no Sesc e não sei o quê. E esse ano provou que é o contrário disso".

Pop com underground

Daniel "Ganjaman" Takara, produtor e arranjador dos discos de Criolo e um dos mentores do encontro do rapper com Ivete Sangalo, acha que os artistas se viram, este ano, mais livres para flertar com qualquer expressão que os emocione. "A crise do mercado causou a extinção do diretor artístico de gravadora equivocado, ou do diretor de rádio que ditava regras estéticas da música popular. Hoje em dia, o pop se confunde com o underground e já não existem barreiras ou padrões para o artista se enquadrar. Acredito estarmos vivendo o momento mais interessante da música brasileira".

Pena concorda e acredita que, "fora da música comercial, dentro da diversidade cultural, as misturas realmente crescem praticamente a cada criação autoral". Ganjaman acredita que é uma mudança mundial, "mas como o Brasil talvez tenha tido historicamente uma resistência maior a essa mistura, nos últimos anos isso tem ficado mais evidente".

Para Ganjaman, o atual momento do mercado é o mais coerente, em termos de rendimento e receita para a música como manifestação artística e cultural. "A popularidade e êxito de um artista nunca dependeu tanto da própria relevância do conteúdo. As redes sociais e plataformas de streaming se tornaram a principal ferramenta, tanto para o independente quanto para o artista consolidado. Isso democratizou os meios de divulgação e nunca se precisou de tão pouco para se obter números expressivos de popularidade. A famosa crise no mercado fonográfico e na indústria da música deu lugar a uma realidade muito mais interessante. A bolha estourou, e toda fortuna concentrada na mão de poucos artistas hoje em dia circula também no meio independente."

Miranda analisa este momento de um ponto de vista socioeconômico. "Isso que a gente chama hoje genericamente de sertanejo universitário já vem de muitos anos atrás e tem a ver com geografia e economia, principalmente pela subida dos gaúchos pelo oeste do Brasil. Eles levaram as tradições gaúchas junto e, com elas, um negócio chamado 'Tchê Music', que foi inventado para competir com os baianos com a axé music nos anos 1990. Só que os grupos, que eram todos 'Garotos não sei o quê' nos nomes, misturaram com o arrocha, que é o samba baiano que existe há anos. Isso que a gente está vendo, que não sabe se é forró, sertanejo universitário, arrocha e tem até uma linhagem gospel, é um retrato do Brasil. O povo se mistura, a pele se mistura, a música se mistura. Qual é o problema com isso?".