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"O punk não seria como conhecemos hoje se não fosse Bowie", diz Kid Vinil

Kid Vinil fala da importância de Bowie - Divulgação
Kid Vinil fala da importância de Bowie Imagem: Divulgação

Kid Vinil

Colaboração para o UOL

11/01/2016 17h32

Meu primeiro contato com a música de David Bowie foi em agosto de 1972, quando ouvia um programa da extinta Rádio Excelsior de São Paulo, à meia noite produzido pela DJ Sônia Abreu. Era uma noite tempestuosa, chovia muito e os raios cortavam o céu. A rádio mostrava em primeira mão o álbum "The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders from Mars".

Aquele momento foi pra mim uma revelação e como muitos dizem "minha vida mudou depois daquela noite". No mesmo programa de rádio, eles mostraram o álbum "Electric Warrior" do T. Rex. Era minha iniciação no Glam Rock. Daí vieram Slade e Roxy Music que eu também idolatrava. Mas dentre esses todos citados Bowie se destacava de uma maneira muito especial.

Sua música trazia o lado hipnótico de Marc Bolan, a energia do Slade e o glamour do Roxy Music. Além de todas essas qualidades, ele encarnava um personagem mutante.

Depois de comprar o LP de Ziggy e ouví-lo ininterruptamente, voltei atrás um pouquinho em sua obra e adquiri o álbum "The Man who sold the world" (faixa título que ficou eternizada pela cover ao vivo do Nirvana). Kurt Cobain era um grande fã de sua obra, mas Bowie influenciou muita gente e diversas gerações.  O punk não seria como o conhecemos hoje se não fosse sua música e sua figura glam dos anos 70

A maioria das bandas de punk rock e new wave (Damned, Ultravox, Siouxsie, Sex Pistols, Blondie...) tinham David Bowie como sua maior referência.

Vieram os anos 90 e o britpop mais uma vez bebia na inesgotável fonte Bowie (Suede, Placebo, Pulp, Blur e etc). No novo milênio de Arcade Fire a Tame Impala, todos reverenciam a obra do camaleão. A minha fase favorita da carreira do Bowie é exatamente essa sequência de álbuns clássicos,"The Man Who Wold The World" em 70, "Hunky Dory" em 71,  "Ziggy" em 72, "Aladdin Sane" em 73, "Pin Ups" em 73 (esse em especial um dos melhores discos de covers que já ouvi, nele Bowie regravou canções de suas bandas  favoritas na década de 60,  The Who, Pink Floyd, Pretty Things, Them, entre outras).

Nesses discos Bowie era acompanhado por um guitarrista espetacular chamado Mick Ronson, uma figura marcante e decisiva na carreira de David Bowie naquele início dos anos 70, assim como foi o produtor Tony Visconti que esteve presente na maioria de seus discos, até o mais recente e derradeiro "Blackstar". Toda essa fase hard e glam sucumbiu após a dissolução do Spiders from Mars e a morte de Ziggy Stardust.

Bowie sentia a necessidade de dar um fim no personagem e partir pra novos horizontes musicais. Não adiantaria ficar preso a um personagem e um mesmo estilo, estava na hora de mudar então veio "Diamond Dogs", em 74, que de certa forma, apesar de não contar mais com a guitarra de Mick Ronson e nem o resto dos Spiders from Mars, ainda trazia resquícios de personagem como foi em Ziggy Stardust.

A música apresentava mudanças radicais, alguns fãs ficaram decepcionados num primeiro instante, mais tarde reconheceriam como mais uma obra prima de sua carreira. No auge da era Disco Music Bowie abraçou o R&B e a Soul Music e chega em 75 com "Young Americans", cujo disco encerra com "Fame" em parceria com John Lennon e Carlos Alomar.


Inquietação

Visualmente Bowie não era mais aquele ser andrógino da era glam. Seu novo look eram terninhos acinturados e bem cortados. As mudanças não ficavam por aí. Em 76, o inquieto camaleão lança "Station to Station". Um disco que ainda bebia na fonte da soul music em "Golden Years", por exemplo, mas que já flertava com a era dos sintetizadores, que culminou em Berlin, na Alemanha, ao lado do cultuado produtor e músico inglês Brian Eno que foi do Roxy Music.

A música eletrônica do Kraftwerk e o pós punk britânico eram a tônica de "Low", em 77. O vanguardista Bowie não deixa por menos, no mesmo ano, em plena explosão do punk rock, ele vem com "Heroes". Dois álbuns que serviam de cartilha para iniciados no punk e pós punk. A trilogia em Berlin com Brian Eno se encerra com "Lodger", outro passo a frente. Sua entrada na década de 80 vem com outro clássico, "Scary Monsters",  e com o hit "Ashes to Ashes" e um de seus vídeos mais chocantes. Adaptado a descartabilidade oitentista produz três bons discos "Lets Dance" com alguns de seus maiores hits radiofônicos e nas pistas, "Let's Dance", "China Girl"  e "Modern Love".

Em 84 veio com o LP "Tonight", em 87 "Never Let Me Down Again". A década de 80 estava muito pasteurizada em termos sonoros e Bowie decidiu pegar pesado lançando sua própria banda o Tin Machine em 1989. Não foi bem aceito pela crítica, mas fez dois discos incompreendidos até hoje, porém com músicas pesadas com referências de hard rock e heavy metal e grandes músicos envolvidos. Bowie premeditou com o Tin Machine o que viria depois com a era "grunge". Não é à toa que os caras do Nirvana o adoravam.

Com o fracasso do Tin Machine, o camaleão volta às suas atividades normais pós "Lets Dance" e continuando criativo nos discos que se seguiram durante a década de 90, um dos melhores foi "Outside" de 1993, onde retoma sua parceria com Brian Eno. No novo milênio Bowie continuou surpreendendo com álbuns como "Heathen" em 2002, "Reality" em 2003 e seus dois mais recentes "The Next Day" de 2013 e agora "Blackstar".

Arte sem fronteiras

A música de Bowie nunca teve fronteiras, ele flertou com todos os estilos musicais. Lembro que recentemente comentei com um crítico da revista inglesa Mojo sobre a coincidência da música "Sue (Or In A Season Of Crime)" e "Cais" do Milton Nascimento. Realmente existe uma grande semelhança entre as duas, mas se levarmos em consideração que no Clube da Esquina, Milton e seus parceiros, beberam na fonte Beatles pra criar "Cais", Bowie não fugiu à regra, mera coincidência?  Como eu disse, a música de Bowie flertou com o jazz, o blues, o hard rock, a música folk, a british invasion, o rock progressivo e a world music. Não havia limite no seu processo criativo. Seu talento não se resumiu somente a música.

No cinema revelou-se um ótimo ator, destaque para três de suas grandes performances: Em 1976 no filme "The Men Who Fell The Earth" (O homen que caiu na terra) -  o papel perfeito para Bowie num science-fiction. Em 1983, participou do filme "The Hunger" (no Brasil "Fome de Viver") ao lado da diva do cinema francês Catherine Deneuve - um filme de horror erótico que se encaixava muito bem naqueles tempos góticos, com direito a uma performance de Peter Murphy e seu Bauhaus. Ainda em 1983, em um de seus melhores papéis, no filme  "Merry Christmas Mr. Lawrence" (no Brasil "Furyo, em nome da Honra") ao lado do cultuado músico e ator japonês Ryuchi Skamoto. Uma história que se  passa na segunda guerra mundial e mostra os efeitos de um flerte homossexual romântico, fantasioso e trágico entre os dois personagens.

Na década de 70 como produtor alavancou a carreira de três nomes importantes do rock. Primeiro foi o Mott He Hoople do sensacional Ian Hunter. Em 72 a banda estava decepcionada com o fracasso dos primeiros discos, mas Bowie os encorajou e compôs o hit "All The Young Dudes" assim como produziu o álbum homônimo, foi um sucesso absoluto. No mesmo ano de 72, ele e seu parceiro, o guitarrista Mick Ronson produzem "Transformer", um dos melhores discos da carreira de Lou Reed. Realmente podemos dizer que 1972 foi o ano mais produtivo e criativo da carreira de Bowie, pois além desses discos que ele ajudou a acontecerem lançou seu clássico "Ziggy Stardust".

Em 1976, Iggy Pop amargava ainda o fim de sua banda o Stooges e sofria depois de uma internação num hospital de doentes mentais, era um caso perdido. O socorro apareceu através do amigo David Bowie, que produziu e compôs com ele o repertório do  álbum "The Idiot". Animado e com todo gás, no mesmo ano ainda com a ajuda de Bowie, veio outro clássico, o Lp "Lust for Life". Iggy estava salvo e voltava a ativa graças ao Bowie, uma dívida eterna.

David Bowie foi responsável por muitas mudanças na cena do rock e do pop, influencia gerações e sua memória continuará viva entre nós. Sua obra é eterna, muitos ainda têm muito que aprender com seu legado. Há alguns anos ganhou uma mega exposição que pra nossa sorte chegou ao Brasil no MIS (Museu da Imagem e do Som) em São Paulo. Foi uma aula para músicos e fashionistas. Seu guarda roupa foi o mais ousado da história do rock. "Ousadia", essa talvez seja uma das tantas palavras que podem descrever esse gênio - David Bowie.

Kid Vinil é músico, DJ, radialista e crítico musical. Mantém semanalmente um programa na 89 FM que reúne tendências, histórias e novidades da música