O consumo de música se tornou mais solitário, acredita Marisa Monte
Chegando aos 30 anos de carreira, Marisa Monte sempre foi resistente à ideia de lançar coletâneas, talvez o mais óbvio dos caça-níqueis da indústria da música. Mas algo mudou. Com seu novo "Coleção", um "best of" baseado em músicas de projetos alheios, ela tenta subverter o formato. "Achei mais desafiador, mais interessante, mais autoral", diz a cantora ao UOL, durante uma rodada de conversas com jornalistas realizada nesta quinta (28), no Jardim Botânico, no Rio.
Ouça "Coleção" no UOL Música Deezer
Sob sua "curadoria", o novo álbum resume a artista por ângulos menos óbvios, como "Nu com a Minha Música", de Caetano Veloso, ao lado de Rodrigo Amarante e Devendra Banhart, e a versão de "Esqueça", de Roberto Carlos, ao som de violão e beat box do músico Dadi, que foi incluída na trilha do filme "Casseta & Planeta - A Taça do Mundo é Nossa".
A ideia de adaptar o que já fora institucionalizado reflete algo da visão de mundo de Marisa. Um mundo em que empreender ajustes estratégicos parece mais importante do que pregar revoluções. É com esse tom "reformista" que ela trata de vários assuntos da atualidade, da queda do império do "álbum" à ascensão digital das plataformas de streaming.
"O streaming é maravilhoso, mas acho que tem que ser aperfeiçoado, principalmente no quis diz respeito à parte de informação. Quem gosta de música quer ler a letra junto, saber quem tocou, quem produziu, quem é o guitarrista", acredita.
Para ela, além de mudar o meio de distribuição, a internet também alterou a forma com que as pessoas se relacionam com a música. "Acho que o jeito de consumir música se tornou mais individual também. As pessoas ouvem hoje nos seus fones, sozinhas. O jeito que elas chegam até o artista também é mais solitário. Elas não vão tanto só pelo que toca no rádio. A internet tem criado novos caminhos".
Outro ponto crítico de mudança está na sempre polêmica Lei Roaunet, que, segundo a artista, precisa ser melhor administrada, embora jamais extinta. "Incentivar a cultura brasileira faz parte de uma estratégia de educação e de saúde", diz Marisa Monte, que se mostra categórica. "Existem algumas manifestações culturais que precisam de subsídio para existir."
UOL - Você sempre foi reticente a coletâneas e agora está lançando uma, mas com um formato um pouco diferente. Por quê?
Marisa Monte - Quando comecei, as pessoas lançavam um disco e no terceiro já lançavam compilação. Eu achava que isso sucateava um pouco a obra e nunca permiti que acontecesse comigo. Mas eu tinha um "best of" previsto como último disco no meu antigo contrato com a EMI, que foi vendida para a Universal, um contrato que tem uns 15 anos e se estendeu.
Nesse meio tempo, surgiu toda essa realidade digital, em que um "best of" não faz muito sentido. Tentei pensar em como eu poderia me envolver nesse projeto e torná-lo mais pessoal, fazendo uma curadoria. Eu poderia ter deixado eles lançarem o disco só pegando a lista de mais baixadas e mais ouvidas no Spotify.
Nesses últimos dois anos, digitalizei toda a minha obra, e achei que seria interessante fazer uma escolha pessoal que mostrasse essa passagem de tempo. Como já estava com tudo na mão, propus trocar hits por alguma coisa assim. Achei mais desafiador, mais interessante, mais autoral.
Fará shows para divulgar o disco?
Não. Esse é um disco de entressafra. Antes de um próximo, que não sei se será um disco. É uma coisa que tenho pensado muito. A internet e esse consumo digital libertaram a gente desse formato de álbum. Álbum não precisa ser um álbum. Mas talvez eu possa gravar três, quatro músicas e ir lançando de forma independente. Depois, no final, posso compilar isso tudo e fazer um álbum físico. Os padrões estão mudando.
E nem sempre existiu álbum. Quando existia disco de 78 rotações, as pessoas lançavam duas músicas no Carnaval, duas nos Dias das Mães, duas no Dia dos Namorados. Acho que posso voltar a fazer assim. O Arnaldo [Antunes] fez assim. Lançou uma música por mês e, no fim do ano, ele lançou um álbum.
Você foi uma das primeiras campeãs de vendas de CDs no Brasil, no início dos anos 1990. O quanto o formato físico ainda importa?
Acho que o formato físico ainda tem e sempre vai ter um nicho, apesar de estar diminuindo cada vez mais. O streaming é maravilhoso, mas acho que precisa ser aperfeiçoado, principalmente no que diz respeito à parte de informação. Quem gosta de música quer ler a letra junto, saber quem tocou, quem produziu, quem é o guitarrista.
Como experiência, acho que ainda faz algum sentido o formato físico. Inclusive para quem gosta de colecionar. Mas, como "ecologia do futuro", acho muito interessante ter menos papel, menos plástico. O consumo de massa do futuro tem muito mais a ver com o consumo virtual.
Em tempos de Luans e Safadões, acha que você virou uma cantora de nicho?
Não. Acho que o brasileiro é muito plural, diverso. Existem inúmeros artistas que são famosos que eu nunca ouvi falar. Acho que isso é reflexo desse consumo mais pulverizado de hoje. E acho que o jeito de consumir música se tornou mais individual também. As pessoas ouvem hoje nos seus fones, sozinhas. O jeito que elas chegam até o artista também é mais solitário. Elas não vão tanto só pelo que toca no rádio ou não sei onde. A internet tem criado novos caminhos. Mas não vejo muito isso [ter virado artista restrita a um segmento], porque faço turnês e tenho um grande público.
Se o consumo é pulverizado, como é possível medir o sucesso hoje?
Acho que são vários parâmetros. Mas são mais pulverizados. Você pode ter visualização no YouTube, música na novela, música na rádio. Tudo isso. Alguns padrões antigos ainda existem. Pode ser por compartilhamento de Facebook, pela quantidade de "views" no Facebook, que não são necessariamente os do YouTube. Acho que tem novos caminhos. Antigamente, muitos artistas faziam muito sucesso no rádio, na TV, mas não vendiam disco nem enchiam show. Ou vendiam disco mas não enchiam o show. São coisas que não têm muito padrão.
Você está entre os artistas que pediram a criação de um órgão para fiscalizar o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). Qual é o problema dele?
O Ecad foi criado como um órgão de fiscalização, subordinado ao Ministério da Cultura. E havia o CNDA (Conselho Nacional de Direito Autoral), que existia dentro do Ministério da Cultura e que funcionava para mediação de eventuais conflitos, com participação de artistas, rádios, associações. O Ecad foi criado como um monopólio, e monopólio não pode existir sem algum tipo de fiscalização. Ele seguiu assim, perfeitamente bem.
Até que em em 1988, com a nova Constituição, foi feita uma cláusula que dizia que uma associação privada, como é o caso do Ecad, não poderia ser fiscalizada por um órgão do governo. Em 1991, o [então presidente Fernando] Collor extinguiu o Ministério da Cultura, e o CNDA deixou de existir. De lá para cá, o Ecad virou uma caixa preta. Ninguém mais sabe o que acontece lá dentro. Em parte também pela própria classe artística. Como diria o Tim Maia, essa é a classe mais desunida no mundo. pareceram milhões de questões sobre o mau funcionamento e questões sobre como era prejudicial para os autores.
É a favor da Lei Rouanet?
Em qualquer lugar do mundo a cultura é subsidiada. E o subsídio existe em qualquer setor da indústria brasileira. Automóvel tem subsídio. Comida. Tudo é subsidiado. Acho importante haver subsídios na cultura. A Lei Rouanet merece ser melhorada. Como isso vai acontecer não sei. Mas acho que incentivar a cultura brasileira faz parte de uma estratégia de educação e de saúde.
Eu nunca tive um incentivo fiscal da Lei Rouanet. Acho que faria sentido se fosse um show gratuito, que tivesse uma contrapartida. Se fosse uma turnê pelas praças públicas do Brasil, eu usaria. Na minha turnê normal, nunca tive. Quando tive patrocínio, era da Natura, mas era dinheiro de marketing deles, "dinheiro bom". Porque esse é "bom", né? (risos) Não deveria ser assim.
Não estou falando só de música, não. Existem algumas manifestações culturais que precisam de subsídio para existir. Se você vai naqueles museus lá fora, vê que todos têm incentivo fiscal. Talvez praças mais comerciais precisem menos dele. É uma questão de ajuste.
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