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"Wando morreu e fiquei no lugar dele", diz Dona Onete, "novata" aos 77 anos

Dona Onete - Laís Teixeira/Divulgação - Laís Teixeira/Divulgação
Dona Onete: De encantadora de botos a cantora profissional
Imagem: Laís Teixeira/Divulgação

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

30/06/2016 07h00

Como dita a tradição paraense, Dona Onete partiu para sua nova turnê internacional com "a boca marcada, a saia rodada", mas com as pernas trêmulas. Ela se apresentou em Portugal na noite passada, onde repetirá a apresentação nesta quinta-feira (30), e dá um pulo nos Estados Unidos em setembro, indo de Albuquerque a Nova York. "Fico amedrontada. Tudo é muito novo para mim", ela revela.

Embora tenha completado 77 anos há duas semanas, a cantora Dona Onete ainda está na flor da idade. Com um carreira profissional de apenas quatro anos, ela caiu nas graças dos gringos e fez um público majoritariamente jovem daqui requebrar com seu dançante "carimbó chamegado". 

O ritmo, criado por ela, mistura lundu africano, o ritmo amazônico do carimbó e a sensualidade latina. Serve também como o remédio para o melindre que as novidades da profissão ainda causam na senhora cantora.

Basta os primeiros aplausos e os gritos de "diva" nas apresentações para ela largar o medo e a cadeira --recomendável nos últimos meses por conta dos bicos de papagaio na coluna e a artrose na perna. Ela logo manda beijos para a plateia e se requebra. Conta que sai do palco com alguns anos a menos. "Parece que a gente fica jovem junto", comenta, ao UOL. "É bom ser amada, não é?"

Carreira tardia

Com o segundo disco, "Banzeiro" [que significa movimento de ondas agitadas], recém-lançado, ela segue movimentando águas ainda não navegadas, colhendo tardiamente o louro, assim como aconteceu em outras décadas com Cartola e Clementina de Jesus.




No caso dela, não foi por falta de incentivo. Nascida em Cachoeira do Ariri, no interior do Pará, ela solta a voz desde que tinha 4 anos. E assim foi: cantarolou em sarais, criou grupos de danças folclóricas e organizou agremiações carnavalescas. Mas preferiu seguir a carreira de professora de História. "Eu tinha medo de não dar dinheiro. Eu ia viver do quê?".

Durante o tempo em que se dedicou às salas de aula e ao gabinete de Cultura do município de Igarapé-Miri (PA), compôs mais de 300 canções às escondidas. Uma dessas letras, "Sonhos de Adolescente", já tem 40 anos e encerra o novo disco com uma declaração de amor a Angela Maria, Cauby Peixoto e Elvis Presley, ídolos que a faziam esquecer da vida de privações.

"Meu primeiro marido tinha um ciúme doentio. Se eu me pintava, ele achava que era para me mostrar para as pessoas. Eu era reprimida no jeito que eu queria ser. Vivia a vida dele, não a minha. O que eu podia fazer era escrever", conta.

Neste mundo particular, ressaltava as lendas do norte do país, mas também deitava a caneta em versos salientes, que faziam o marido pular da cadeira: "Que diabo de música é essa?".

É dessa safra os maiores hits nos shows, "Poder da Sedução" e "Jamburana". Nesta última, ela narra o efeito da erva jambú, conhecida por lá como afrodisíaco feminino, que faz subir, descer, tremer e "chega até o céu da boca". A nova "Proposta Indecente", que mistura iê iê iê com o brega do Pará, é mais dengosa: "Os meus beijos te esperam / Meus abraços também/ Vem correndo, meu bem".

"Escrevo novelas e dá logo uma minissérie. A cabeça vai longe. Eu viajo rápido na maionese", ela explica, aos risos.

Tamanho chamego é inerente do calor de Belém, do perfume local (que ela carrega de um lado para o outro em um garrafa PET de 2 litros) e de outro ingrediente: "Sou geminiana", responde. "O Wando morreu e eu fiquei no lugar dele."

Encantadora de botos

Quando era menina, Ionete da Silveira Gama tinha a fama de atrair os botos ao cantar na beira do rio das Flores, em Igarapé-Miri. Subvertia a lenda de que o animal se transformava em homem para aprisionar as moças.

Não foi dinheiro e conforto que a fez se lançar, anos depois, aos 72 anos, como cantora profissional, mas sim a liberdade adquirida. "Já vivi e vi muita coisa. Hoje existe uma liberdade, mas antigamente eu não tinha. Na minha época, tudo era pecado, tudo não podia fazer", explica. "Casei pela primeira vez aos 25 anos, mas não deu certo. Depois me casei de novo, e fiquei viúva. Agora não quero mais ninguém mandando na minha vida."

Logo nos primeiros anos liberta, foi descoberta pelos jovens do Coletivo Rádio Cipó, de Belém, no começo dos anos 2000. De convidada ocasional pulou para a principal porta-voz do movimento musical da região. Produtor do primeiro disco, o músico paraense Marcos André sacou logo o poder daquele canto: "Dona Onete, isso aqui é para fora do Brasil", ele disse. O primeiro disco, "Feitiço Caboclo", vendeu 1.000 cópias em uma semana em Londres.

Ela se recorda de quando teve certeza de que seria cantora. Se apresentava em Brasília e passou a mão em uma flor para prender no cabelo --gesto que a acompanha até hoje: "Aí eu senti que a Dona Onete não era mais aquela velha Dona Onete."

"Meu último sonho se realizou: era me libertar do meu casamento. Mas muita gente ainda pede minha mão nos shows", conta, faceira. 

Pode ser uma questão astral ou apenas o aroma do perfume caseiro, mas os botos (e o público) seguem seduzidos. "É um tal de me cheirarem. Eu não sei o que é. O Pará tem muita magia".