Topo

Longe da imagem de guru político, Mano Brown quer falar de amor

"Amor distante", o single romântico de Mano Brown, chega com clipe nas próximas semanas, antecipando o tão aguardado álbum solo, "Boogie Naipe", previsto para dezembro - Marcelo Pretto
"Amor distante", o single romântico de Mano Brown, chega com clipe nas próximas semanas, antecipando o tão aguardado álbum solo, "Boogie Naipe", previsto para dezembro Imagem: Marcelo Pretto

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

06/10/2016 10h45

Se tem algo que Mano Brown está cansado de escutar é de como ele e os Racionais MC's mudaram com o passar dos anos. "Não tem como ficar [o mesmo] como era 25 anos atrás", rebate o rapper. "[Naquela época] Eu nem tinha saído do Brasil, nunca tinha visto o mar de perto, eu não conhecia nem Santos [litoral paulista]".

Hoje, como ele mesmo enfatiza, o Capão Redondo, bairro da zona sul de São Paulo onde mora, não tem mais o antigo aspecto rural, nem o líder do Racionais é aquele cara desconfiado, com letras raivosas de forte cunho político e social. Brown, como quase todos os mortais, assiste "The Get Down" na Netflix e tem dado as caras até mesmo no Instagram, onde publica foto até quando dá um tapa no visual no cabeleireiro.

O rapper mais importante do país voltou também a ser combativo nas rimas, mas agora para falar de outro sentimento tão áspero e adulto quanto antes: o amor. "A linguagem moderna de protesto político, pelo menos nos últimos 30 anos, sempre foi do ponto de vista do coletivo, de classe, de raça ou de gênero", defende. "Humanizar [este sentimento] talvez seja a palavra certa".

"Amor Distante", o primeiro single, será lançado já com clipe nas próximas semanas, antecipando o tão aguardado álbum solo, "Boogie Naipe", o mesmo nome da sua produtora, previsto para sair em dezembro, com produção de Lino Krizz e de Mano Brown.

Em entrevista ao UOL por e-mail, ele se afasta da imagem de guru político e analisa: "Por que ficar induzindo as pessoas a escolher o vermelho ou o azul, sendo que elas podem escolher sozinhas?". Questionado pela reportagem sobre a vitória de João Dória (PSDB) à prefeitura de São Paulo, inclusive na periferia, o rapper não quis comentar especificamente -- disse que já havia dito tudo sobre o assunto nas outras respostas. "A luta não será abandonada nunca. Agora, as pessoas têm que ser responsáveis pelas suas escolhas".

UOL - Seu primeiro disco solo tem sido aguardado há muito tempo. Como foi a produção nos últimos anos?

Mano Brown - O processo começou se ouvindo muita música. Ouvindo Marvin Gaye, músicas mais românticas, assuntos mais adultos. É uma abordagem também mais profunda da minha comunidade, das vidas das pessoas. Tudo parte de uma realidade, de uma necessidade de ser útil. E também de escrever outras músicas, com outras mentes, outros companheiros de composição, com outras influências. Foi um grande aprendizado também, uma faculdade.

O que você quer dizer nesta sua estreia solo que não dizia nos Racionais?

Eu sempre disse tudo o que eu quis dizer através do Racionais e o Racionais nunca me barrou de falar ou fazer nada. Isso também é uma coisa importante de falar. Eu sempre lutei pela minha liberdade dentro do meu trabalho. Tudo o que eu fiz, eu fiz porque quis, nunca em dúvida. Esse trabalho também eu fiz com convicção porque eu acho que posso continuar conversando com as pessoas o que eu quero conversar, sendo relevante na vida delas, quero ser companheiro nas horas difíceis, quero estar tocando nas cabeceiras das camas, nos toca discos, nos rádios dos carros. Quero que a minha música continue sendo popular e útil.

10.out.2014 - Mano Brown se apresenta pela primeira vez em São Paulo, na madrugada desta sexta (10), no Brook's Bar, reduto sertanejo da zona sul da capital. O rapper trouxe ao palco seu projeto solo o "Boogie Naipe" - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
Em 2014, quando apresentou pela primeira vez o projeto solo no Brook's Bar, reduto sertanejo da zona sul de São Paulo: "Quero estar tocando nas cabeceiras das camas, nos toca discos, nos rádios dos carros. Quero que a minha música continue sendo popular e útil"
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

No seu projeto solo, o discurso contundente dá espaço para recados mais universais, sobretudo sobre amor. Qual é a sua visão sobre o tema?

Esse é o grande lance, a visão do coletivo para o individual agora. A linguagem moderna de protesto político, pelo menos nos últimos 30 anos, sempre foi do ponto de vista do coletivo, de classe, de raça ou de gênero. Nesse disco, meu trabalho é mais intimista, sim, são coisas que talvez não houvesse espaço em outros tempos, outras épocas e que se usou e abusou dessa tal palavra amor. E se lucrou muito com isso também, fazendo músicas que abordavam romance, vida pessoal, desencontros, felicidades e tristezas. Talvez eu procure humanizar um pouco. Humanizar [este tema] talvez seja a palavra certa.

É um resgate também da sonoridade que fez sua adolescência nos bailes?

É uma visão minha do funk e do soul, da música negra. É um disco negroide. Não diria resgate, pois a minha projeção é para frente. Uso uma mistura que já existiu e crio uma química nova, como quase tudo na vida, né? Uma Ferrari [modelo] 2017 com certeza tem coisas da primeira Ferrari, da primeira edição. É uma continuidade dentro de uma hierarquia. Uma herança que a gente tem de outras pessoas que passaram aqui antes da gente, e eu honro isso. Música negra é minha religião.

Com "Cores e Valores" [disco dos Racionais lançado em 2014], muitos fãs enxergaram que o grupo estava virando as costas para o rap de raiz. Isso te influenciou na hora de finalizar seu disco solo?

Influenciar sempre influencia. Nesse caso foi numa escala bem pequena. Esse disco "Boogie Naipe" já é um disco que está na contramão do que é comercial, vendável. Ou do que é bola da vez. Todo mundo sabe o que é que se tem que fazer hoje para sair na frente. Tem 3 ou 4 tipos de música que comanda o mercado e não é na direção delas que eu estou indo. Se eu for abençoado em criar outra opção na indústria, glória a Deus, mas eu não estou indo na direção das outras. Apesar da gente acabar disputando o mesmo público. Qual o público do sertanejo, do samba, do outro barato? O pessoal da favela. Então todo mundo disputa o mesmo público. Está lançada a sorte, não tem nada garantido. O trabalho do Racionais tem força própria, entende? Já compreendi isso. Quem sou eu para dizer que o Racionais é mais isso ou aquilo. O Racionais pertence a essa multidão que ajudou a colocá-lo lá em cima. E o Mano Brown continua sendo leal a esse povo. Eu sou romântico, apaixonado pelo ser humano. Acima até da própria causa é o ser humano. A causa é pelo ser humano.

Mano aspas - Marcelo Pretto/Divulgação - Marcelo Pretto/Divulgação
"A justiça começa em casa. Cada um tem que fazer seu papel, e esse impeachment [da presidente Dilma Rousseff] mostrou isso. A gente sabe que existe outro lado que está descontente, e que vai articular para ocupar o lugar que antes era deles. Não está suave. Não dá para dormir em cima da fama, em cima do passado. A luta é constante"
Imagem: Marcelo Pretto/Divulgação
Seu disco solo sai em um momento em que as ruas têm mostrado, mais uma vez, a divisão social e política do Brasil. Por que falar de amor neste momento?

Por que não falar? Por que as pessoas não podem ter a sua própria visão e se responsabilizar pelas escolhas delas? Cada um faz a sua parte. Por que ficar fazendo música direcionando fulano a votar em A, B ou C, ou a seguir vermelho, azul ou verde? Está sempre direcionando 'faça isso e não faça aquilo'. Quando é que as pessoas vão se assumir também? Sem justiça não há paz! A questão é que a justiça não está sendo feita nem nos próprios domínios. A justiça começa em casa. Cada um tem que fazer seu papel, e esse impeachment [da presidente Dilma Rousseff] mostrou isso. A gente sabe que existe outro lado que está descontente, e que vai articular para ocupar o lugar que antes era deles. Não está suave. Não dá para dormir em cima da fama, em cima do passado. A luta é constante, vigilância, é lógico que ia existir outra força para ocupar o lugar que era deles. É isso, e é a mesma coisa na música. É óbvio que existe uma força contrária, existe a minha força e existe a contrária. Eu trabalho com todas as possibilidades, até a do fracasso. 

Desde a última campanha de Dilma à presidência, você se ausentou um pouco dos comentários políticos, com exceção de seu show na Virada Cultural de São Paulo, em maio deste ano, quando você disse para o público: "Nossa mente fechou, se alienou. Tomamos um golpe, e seu voto não valeu nada". Você acha que a juventude e a periferia assistiram a isso sem reagir?

Eles precisam assumir o seu lugar. Politicamente unidos, a gente é muito mais forte. Se a periferia quer escola, quer hospital melhor, vai para rua, se une, vai à luta. As pessoas se juntam no carnaval, na final do campeonato, na parada gay, certo? Então o que é prioridade? Aí já não é o pastor, a liderança, o rapper, é o povo que tem que saber o que quer. Não estamos falando de 200 milhões de crianças, estamos falando de adultos. Um povo adulto, que sabe e conhece marca de cigarro, bebida, marca de perfume bom. Nos últimos três governos, onde a economia deu uma levantada, o povo aprendeu o que era bom também. Então o povo tem que ser responsável pelo cara que ele elege. Tem que ser responsável pelas suas escolhas. Não se pode acreditar na teoria de que o povo é um ser sem inteligência, um ser sem luz, sem opinião. Eu não acho isso não. Escolheu mal, se “arrombou” na vida. Paga por isso. Livre arbítrio, você escolhe a pior alternativa, quer o quê? Massagem da natureza? É coco, mano. Não é só para pobre e preto, isso é para geral. A gente não vai jogar a toalha nunca. A luta não será abandonada nunca. Agora, as pessoas têm que ser responsáveis pelas suas escolhas.

De maneira geral, o Mano Brown de 2016 está mais aberto? Qual é a mudança mais significativa entre você hoje e aquele Mano Brown do "Holocausto Urbano" (1990)?

O Mano Brown do "Holocausto Urbano" era 27 anos mais jovem que o de hoje, quer maior diferença que isso? Eu tinha mais tempo a perder. Era um universo totalmente diferente, o Capão Redondo era semi-rural, praticamente uma fazenda dentro da cidade grande. Inflação super alta, não tem como ser o mesmo Mano Brown. Não é questão de caráter, é questão de evolução da espécie, né não?! Eu nem tinha saído do Brasil, nunca tinha visto o mar de perto, eu não conhecia nem [a cidade litorânea de] Santos quando eu comecei a cantar. Mas hoje eu enxergo possibilidade de melhora coletiva, enxergo mais possibilidades. Não sou um pessimista de plantão. O que tem de errado eu já sei, e se você ficar regando, jogando água, vai crescer. Eu vejo a evolução da espécie, a evolução do nosso pessoal. Eu vejo a sensibilidade, eu vejo a inteligência, eu vejo uma afinidade também no povo da periferia. Os moleques dessa nova geração são a evolução da espécie, e eles não vão ser como a gente era em 1990. Outro mundo, outro universo.

Duas cenas no Instagram: Cortando cabelo no salão preferido no Capão - Reprodução/Instagram/Manobrown10 - Reprodução/Instagram/Manobrown10
Duas cenas no Instagram: Cortando cabelo no salão preferido no Capão e usando uma imagem da internet onde o título de eleitor serve para enrolar baseado: "Tá valendo porra nenhuma memo!!", escreveu
Imagem: Reprodução/Instagram/Manobrown10
Nos últimos anos, você também tem aparecido mais nas redes sociais, ouvindo um som e até enrolando baseado com o título de eleitor [após a votação que tirou Dilma da presidência]. Tem curtido as redes sociais?

Gosto sim e continuo sendo o mesmo cara lá. Se tiver que xingar eu xingo, se me agredir eu revido, se me ofender eu ofendo de volta. Pela rede social a gente percebe que o mundo mudou também. A gente vê como as pessoas te enxergam e temos que entender isso. Temos que lidar com o imaginário delas.

Assiste também Netflix? O que achou de "The Get Down", série que retrata o surgimento dos movimentos do hip-hop, do punk e da disco na cena musical e cultural da Nova York dos anos de 1970?

Gostei muito. Eu sou daquela fase. Sou daquela geração. Eu não participei daquilo, mas a gente aqui no Brasil pegava a brisa do final dos anos 1970. A gente curtiu de tabela. A série é bem documental, não fala só sobre o movimento, fala da sociedade e das transformações políticas.

Sua mulher, Eliane Dias, tem se posicionou mais claramente na campanha municipal. E, nos últimos tempos, se tornou uma referência muito grande no empreendimento musical e como representante da militância feminista. Como é trabalhar com ela e vê-la se tornar um destaque no meio?

Tudo isso vem de uma construção de debate, de desentendimento também, porque é necessário. Ela tem a visão dela e que muitas vezes vai de colisão com as minhas. A gente vive num universo machista, então tem a água que todo mundo bebe, o ar que todo mundo respira, e de repente você bate de frente com alguém que contesta tudo aquilo que esta aí. A gente lutou para que fosse assim, porque a gente lutou pela igualdade, para que as mulheres tivessem mais espaço, a mulher negra tivesse o espaço dela, e o homem, e a mulher, e o gay, e o índio. Isso é a própria transformação e ela vai longe também, será exemplo para muitas outras que virão por aí. Eu apoio e a tendência é as mulheres ocuparem a maioria dos cargos aí, mais estratégicos, a tendência é essa mesmo. É o novo momento.