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Herdeiro do punk rejeita celebrações: Não era esse sistema que nos odiava?

Joseph "Joe" Corré, filho legítimo do casal 20 do punk: a estilista Vivienne Westwood e o empresário Malcolm McLaren - Rachel King/Divulgação
Joseph "Joe" Corré, filho legítimo do casal 20 do punk: a estilista Vivienne Westwood e o empresário Malcolm McLaren Imagem: Rachel King/Divulgação

Juliana Resende (BR Press)

Colaboração para o UOL, em Londres

09/11/2016 06h30

Um mal criado bem-sucedido. Assim é Joseph "Joe" Corré que, apesar do sobrenome diferente (que veio da avó materna de seu pai), é filho legítimo do casal 20 do punk: a estilista Vivienne Westwood e o empresário dos Sex Pistols, Malcolm McLaren.

Corré, 48, é cocriador da grife de lingeries sexy Agent Provocateur, da boutique descolada A Child of the Jago --uma alusão a uma favela londrina do século 19-- e diretor da marca de maquiagem Illamasqua. Com uma ficha corrida de serviços prestados à indústria da moda, ele foi agraciado em 2007 com o MBE (Most Excellent Order of the British Empire).

Mas não é todo prêmio que Corré aceita de bom grado: ele já recusou até a comenda máxima da monarquia britânica. Esnobou em protesto à adesão do então primeiro-ministro Tony Blair à Guerra do Iraque.

Protestar é com ele mesmo. Agora, Corré promete tocar fogo em algumas relíquias de família: peças que são parte da herança punk. O ato é um anticlímax às celebrações oficiais dos 40 anos do movimento punk que, para ele, é uma apropriação indevida do sistema --afinal, não era esse mesmo sistema que odiava tanto o punk e fez de tudo para boicotá-lo?

Londres promove neste mês de novembro um calendário cultural extenso, misturando música, cinema, exposições e festas. O evento Punk.London, por exemplo, catalogou e expôs doações públicas, entre objetos e indumentárias icônicos da era de ouro do "faça você mesmo".

O que se sabe é que fumaça há de subir no bairro londrino de Camden na próxima semana. Há quem diga que a fogueira punk é mais uma jogada marqueteira de mestre de Joe Corré.

UOL - Por que você decidiu queimar sua valiosa coleção de memorabilia punk?

Joe Corré - Porque é uma maneira de questionar que valor essas coisas podem ter numa época em que o establishment está celebrando o punk. Como alguém pode apoiar uma celebração dos 40 anos da música "Anarchy in the U.K.", dos Sex Pistols, promovida por um prefeito de Londres [o conservador Boris Johnson] cujo trote de admissão no clube de garotos de uma escola pública era queimar notas de 50 libras em frente aos sem-teto?

Queimar a tralha em vez de, por exemplo, doar para uma ONG reverter em dinheiro para trabalho social é a melhor maneira de denunciar essa apropriação supostamente indevida do punk pelo establishment?

Quero criar um diálogo na esfera pública onde todos estão convidados a questionar e refletir sobre se estas coisas dos anos 1970 têm mesmo valor e qual é ele. Cresci no epicentro do movimento punk, no sul de Londres. Homens cuspiam na minha cara por eu ser punk aos nove, dez anos de idade. Nosso apartamento era alvo de trogloditas do National Front [partido de extrema direita britânico], que quebravam as janelas e ameaçavam nos matar. A loja dos meus pais, a SEX, também era alvo de vandalismo dos hooligans ou de batidas policiais. Pessoas eram presas e multadas por usar roupas punk, eram esfaqueadas e agredidas.

Os Sex Pistols foram banidos do rádio, e seus discos proibidos de vender e eles não podiam fazer shows, mesmo estando em primeiro lugar nas paradas. Éramos odiados pelo establishment, perseguidos pela mídia deles e amados pela geração 'no future', que não sabia o que fazer além de usar o uniforme punk e dançar. Mas alguns de nós encontrou no movimento as faíscas que precisavam para acreditar que podiam criar seu próprio caminho para sair do 'no future'. O movimento inspirou pessoas a terem confiança de, juntas, levantarem-se e dizerem: 'Eu não aceito este estado das coisas". Isso, para mim, é a maior herança do punk.

Malcolm McLaren - Divulgação - Divulgação
Malcolm McLaren e Vivienne Westwood em foto de 1971
Imagem: Divulgação

Qual foi sua primeira reação quando soube do festival Punk.London?

No dia em que fiquei sabendo que esse evento era promovido por e tendo como beneficiárias instituições como o British Tourist Board, o British Fashion Council, o British Museum, a Prefeitura de Londres, minha reação foi: 'O quê?'. Primeiro de tudo, por que 40 anos? A impressão é que alguém quis criar um evento já que não havia nenhum casamento real para entreter os turistas. Quem realmente está por trás disso? A Heritage Lottery [fundo da loteria britânica]? A Prefeitura? Para onde todo este dinheiro está indo? Vai para os sem-teto? Quando eles vão começar a vender canecas da Rainha com um alfinete no nariz na loja do Buckingham Palace?

Qual é a razão desta apropriação do punk pelo establishment, na sua opinião?

O movimento punk está sendo usado pelo establishment para vender uma falsa justiça social na sociedade britânica, do tipo: 'Vejam como somos tolerantes, abertos e democráticos'. Só falta sair na 'Vogue' e ter a Anna Wintour [editora da edição norte-americana da revista] no tapete vermelho do New York Met Ball, dizendo: 'Estou usando este vestido pink floral porque o Paul Simonon, do The Clash, me confidenciou que a cor do punk é pink'. Que porra é essa?

Há algum paralelo entre a geração 'no future' dos anos 1970 com a geração Z dos anos 2000?

Sim. O meio ambiente está sendo destruído de maneira devastadora. Estão arrasando tudo. O TTIP [sigla em inglês Parceria de Comércio e Investimento Transatlântico, entre EUA e União Europeia na área de ambiente e saúde] está aí, mostrando acordos escusos. Londres está sofrendo uma limpeza social e étnica e se transformando numa espécie de parque temático para gente rica que não paga impostos, enquanto pessoas normais não suportam o custo de vida na cidade. O ex-prefeito Boris Johnson parece indiferente a isso. E eu o convido para riscar o fósforo que vai acender a fogueira em que vou queimar a memorabilia punk em 26 de novembro.