O CD duplo "Mutant Disco", que acaba de ser relançado pela pequena gravadora franco-americana
ZE Records, (ainda sem distribuição no Brasil), traz de volta a cena musical nova-iorquina da virada da década de 70 para 80.
Originalmente lançada em 1981, a coletânea é uma boa amostra da esquizofrênica, mas muito divertida, cena que juntava elementos de gêneros tão díspares como disco e punk - dois extremos da música pop naqueles anos.
"Mutant Disco" exemplifica as loucuras que foram feitas na época para fazer o povo dançar, momento que cravou seu nome no rodapé da história da música como "no wave" - ou, se preferir, jazzfunkpunk ou discopunk (sendo essa a mais descritiva das alcunhas).
"No wave" foi o paralelo nova-iorquino do que estava acontecendo em Londres com artistas como Cabaret Voltaire, 23 Skidoo, The Human League e A Certain Ratio nestes
mesmos anos. Mas, diferentemente da cena inglesa, a influência disco na música que se criava em Nova York era mais forte, o que se mostra evidente na seleção de "Mutant Disco".
Na época estava em voga aquilo que soava bizarro e diferente aos ouvidos, mas que ao, mesmo tempo, levantava a pista dos muquifos que acabavam de abrir em Nova York (como Roxy, Warehouse, Paradise Garage, Music Box e Zanzibar, por exemplo) e no mundo afora. Preste bastante atenção nas programações de bateria eletrônica nas músicas desta coletânea. O que se ouve em "Mutant Disco" é aquilo que influenciou profundamente a música para dançar nos anos 80 e permanece, até hoje, como referência.
Kid Creole com os seus Coconuts é quem melhor personifica a época. August Darnell, aka Kid Creole, é um mezzo latino (o pai era porto-riquenho e a mãe, canadense), que cantava em inglês com muitas frases e piadas em espanhol, misturando rumba com disco em um som que colocava todos os ouvintes para dançar. Na banda, Kid Creole era acompanhado nos backing vocals por duas loiras alemãs, com sotaque pesadíssimo, e enchia os seus arranjos de percussão e sopros.
No palco, o cenário era repleto de palmeiras e areia, e Kid se apresentava vestindo um "zoot suit", símbolo-mor de latinidade nos EUA. Mas sensacional mesmo eram as linhas de baixo. Diferente das batidas programadas de disco music, o baixo de Kid Creole & the Coconuts era funkeado, sincopado e sempre em primeiro plano.
Ouça a cafona, porém dançante, "I'm A Wonderful Thing Baby" em
alta ou
baixa velocidade. Vale lembrar que esta faixa foi gravada há mais de 20 anos. A versão é um remix do próprio August Darnell para música incluída no álbum "Tropical Gangsters", lançado em 1982.
Kid Creole está muito bem representado neste álbum duplo com sete produções próprias, além de manter uma mão em várias das outras 24 faixas de "Mutant Disco". Uma produção seminal que tem a mão de Kid é "Emile (Night Rate)" com os Aurel Exciters, faixa de 1979. Como a maior parte dos lançamentos da ZE Records, ela foi gravada no estúdio de Bob Blank, um maluco engenheiro de som envolvido com as loucuras sonoras de Sun Ra.
Ouça uma homenagem ao nitrato de amil ("amil nitrate", cujo nome popular nos EUA é
poppers), que era muito popular nas pistas na época e não era proibido. O efeito do nitrato de amil é semelhante ao do lança-perfume. Ouça "Emile" com Aural Exciters em
alta ou
baixa velocidade.
O momento mais "no wave" em "Mutant Disco" -e o que mais se aproxima com a cena londrina da época- é James White & The Blacks com sua histérica "Contort Yourself", também produzida por August Darnell. A faixa é de 1979 e ironiza a cultura da
disco music. James, um funkeiro branco, escolheu o nome White em contraste com o do padrinho do funk, James Brown.
James White, também conhecido como James Chance, nasceu James Siegfried e queria ser o mais sensacional artista de vanguarda na cena nova-iorquina. Ele fazia um funk simples, cacofônico e sem muitas sensibilidades pop, mas, sendo assim, conseguiu mais do que os seus 15 minutos de fama. Ouça "Contort Yourself" em
alta ou
baixa velocidade.
O exemplo menos "no wave" e mais "new wave" do "Mutant Disco" fica por conta do grupo The Waitresses. A faixa "I Know What Boys Like" é bem na linha dos seus conterrâneos dos B52's. Ouça "I Know What Boys Like" em
alta ou
baixa velocidade. A faixa fica entre o cantado e o falado, sendo, antes de mais nada, irônica.
Da ironia para o humor, uma das músicas mais engraçadas é a da cantora Cristina, na época aspirante à rainha da disco, cantando uma versão absurda de "Drive My Car" - isso mesmo, da dobradinha Lennon/McCartney. Ouça aqui em
alta ou
baixa velocidade.
Outra aspirante à diva da discopunk é a francesa Lizzy Mercier Descloux. Nativa de Paris, Lizzy chegou em Nova York em 1978 com o também parisiense Michel Estaban, um dos fundadores da ZE Records, se instalando em um loft no Soho junto de Estaban e Patti Smith. O trio pintava, cantava e participava na vida do submundo artístico. Ouça o ataque sonoro que é a faixa super disco "Fire" aqui em
alta ou
baixa velocidade.
"Fire" foi um dos sucessos da Lizzy e é extraído do álbum "Press Colour". O álbum foi gravado em dez dias no estúdio do Bob Blank sob o nome Rosa Yemen. A banda era Lizzy e o seu amigo DJ Barnes. Nas apresentações, Lizzy vestia roupas inspiradas nas pinturas de Malevich e tocava e cantava até não agüentar mais. As aparições da Rosa Yemen tinham um grande grupo de fiéis seguidores e eram muito hypadas em Nova York na época. Curiosidade: em 1985, Lizzy gravou um álbum no Rio de Janeiro, chamado "One 4 the Soul", fazendo a linha crooner moderna à la Sade.
Was (Not Was) é uma dupla nativa da cidade de Detroit, estado de Michigan, EUA, que cresceu ouvindo muito o som da Motown. Era formada por David Weiss e Don Fagenson, dois judeus que faziam som de negão e se chamavam de irmãos: David e Don Was. No final dos anos 70, um morava em Nova York e o outro em Detroit, o que implica que as músicas incluídas em "Mutant Disco" foram feitas através de conversas telefônicas entre os dois.
A sua primeira música a fazer sucesso nas pistas, "Wheel Me Out", traz a mãe de David Weiss nos vocais. Ouça "Wheel Me Out" em
alta ou
baixa velocidade. É uma confabulação dadaísta de funk e rock.
Incluída no "Mutant Disco" está também a não menos dadaísta "Out Came the Freaks", que conta com a participação do lendário guitarrista de MC5, Wayne Kramer.
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