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Paradisíaca, sangrenta e dividida, Paraty tem sua violência exposta em livro

Rodrigo Casarin

08/08/2017 09h24

Muita gente se surpreende quando digo que Paraty é extremamente violenta. Terra de paisagens deslumbrantes e um centro histórico precioso, o lugar também desponta como um dos mais sangrentos do Rio de Janeiro – no ano passado foi, proporcionalmente, o município do estado com o maior número de assassinatos por arma de fogo, 60,9 casos para cada cem mil habitantes. Neste ano, um homem foi morto na rua e teve sua cabeça decapitada e queimada na frente de moradores. Dois de seus bairros mais populosos, Mangueira e Ilha das Cobras, são controlados por organizações criminosas diferentes, cisão decisiva para a conturbada realidade.

Essa violência já afastou escritores da Flip, o principal evento da cidade. Este ano, Anderson França precisou cancelar sua presença em Paraty após receber ameaças de morte. Em 2015, o italiano Roberto Saviano cancelou sua participação na Festa alegando motivos de segurança. Na ocasião, fiz uma matéria relatando como havia uma Paraty que os turistas desconheciam. Minha principal fonte foi o escritor e jornalista Ronaldo Bressane, que havia acabado de passar três meses por lá, a convite do Sesc, para produzir um livro – a chamada residência literária.

Dois anos depois, o romance nasceu. "Escalpo", publicado pela editora Reformatório, mostra parte dessa bárbara realidade camuflada pelas belezas naturais e os interesses turísticos. "A Mangueira é controlada pelo Terceiro Comando. Quem é da Ilha das Cobras nem cruza a rua pra Mangueira, e quem é da Mangueira não cruza para a Ilha das Cobras, tem que fazer a volta", explica uma das personagens para o protagonista, dando uma breve ideia de como é a vida de quem habita o lugar.

Pouco antes, na narrativa, um jovem havia sido assassinado em praça pública, no meio de uma multidão, cena que flerta com um tiroteio que aconteceu em 2015, quando, durante a passagem de um bloco de carnaval, gangues rivais entraram em conflito em plena Praça da Matriz, deixando um morto e nove feridos. Ao ver o corpo no chão, o protagonista do romance se surpreende com a reação das pessoas: "Eu vou mudar dessa cidade, não dá pra viver sem segurança, disse uma senhora. E o pior é que espanta os turistas, um jovem concordava, tomando um gole de cerveja". Sim, na cabeça de muitos, a violência só é um problema que realmente deve ser combatido se impactar diretamente na economia formal – que, no caso, é fomentada principalmente pelos turistas.

Bom livro para quem quer conhecer o que há por trás dos cartões-postais, "Escalpo" também passa brevemente pela formação da cidade – "Em Paraty se aguarda a novidade, a velha novidade, qualquer novidade, seja ela ouro de Minas Gerais, cana-de-açúcar do interior, escravos da África, dólares e euros dos turistas munidos de câmeras e paus de selfie" – e pelos tipos que ali vivem: pessoas que moram em embarcações, poetas que oferecem seus versos quase sempre pobres pelas ruas, gringos que vislumbraram a vida em um paraíso tropical e os caiçaras, claro. Um destes, aliás, se queixa em certo momento:

"Tu sabia que até hoje não tem esgoto em Paraty? Nós continua cagando no rio e no mar. E os gringo chegando, comprando tudo que é pousada, restaurante, bar, e nós caiçara se fodendo lá pro sertão. Igual no tempo dos tamoios. Nada muda, nada vai mudar, mer'mão".

Ronaldo Bressane. Foto: Rafael Roncato.

Violência atual e histórica

"Escalpo", no entanto, não se trata de um livro-denúncia sobre as mazelas de Paraty ou de um painel sobre a cidade, que só vira palco da história lá pelo último terço da obra. Na narrativa, acompanhamos Ian Negromonte, quadrinista em crise com seu trabalho e, recém-separado, com seus sentimentos – além disso, alguém que perde a consciência com uma frequência impressionante. Procurando por um lugar para morar, conhece Miguel Ángel Flores, escritor chileno que chegou ao Brasil após fugir da ditadura de Augusto Pinochet.

Velho e com dificuldades de locomoção, é Miguel quem propõe a Ian que saia pela América do Sul em busca dos dois filhos que não vê há quarenta anos. Sozinho, sem ter um teto e sem grandes perspectivas profissionais, não teria razão alguma para que Ian recusasse a oferta. Imediatamente ele deixa São Paulo para viajar por cidades como Santiago, a capital chilena, Cabo Polônio, no Uruguai, e, claro, Paraty.

A violência histórica e atual da América do Sul é outro dos temas abordados pelo livro. Se Ian sofre com a repressão policial em protestos que acontecem pelas ruas de São Paulo – uma agressão de um PM arrebenta sua mão, seu principal instrumento de trabalho -, ao viajar, depara-se com as cicatrizes e as chagas deixadas pelas ditaduras que assolaram diversos países da região na segunda metade do século 20. Esse longo trecho sobre o tema é impactante:

"Bem, você devia saber, no Chile faziam de tudo. Temos os torturadores mais sofisticados da América Latina, os caras usavam até um 'Manual do Interrogador', sabia? Ali eles dizem que a tortura é a arte de extrair a verdade através das técnicas de prescrição de dor. Eles também gostavam do pau de arara, uma invenção de vocês, brasileiros, sorriu Lindsay, transparecendo prazer ao detalhar as sevícias da casa da morte. Na Grimaldi costumavam amarrar uma pessoa no chão e fazer uma pick-up passar por cima dos pés, depois das pernas, até que espatifavam o crânio da pessoa debaixo das rodas. Ou amarravam a pessoa no para-choques e a arrastavam pelas ruas a noite inteira, depois do toque de recolher. Isso, fora o básico: surras, estupros, banho de merda e mijo, insistia Lindsay, se aproximando. Ou deixar uma mulher nua num cubículo e jogar ratos esfomeados lá dentro. Hum, isso também fizeram no '1984', lembrei, Orwell tem uma descrição parecida de uma tortura com ratos no final do livro. Sim, no Chile botaram em prática o que os nazistas tiveram nojo de fazer, ela concordou, dando outro gole de pisco. Aqui, pelo menos, estamos colocando essas pessoas na cadeia. No Brasil os torturadores estão todos soltos. Sim… no Brasil somos amigos dos nossos inimigos, eu disse. Às vezes me pergunto se isso demonstra excesso de amor ou excesso de covardia".

Apesar do começo um pouco arrastado, com Ian passando de apartamento em apartamento atrás de um lugar que caiba no seu bolso, logo "Escalpo" engrena e mantém um bom ritmo Dentre os méritos de Bressane, destaque para as muitas cenas de sexo que me lembraram Reinaldo Moraes em seu "Pornopopeia". Além disso, um enredo bastante atraente e bons personagens fazem com que o leitor vença tranquilamente as mais de 250 páginas do livro.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.