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Cannes destaca crianças fortes diante do mundo insano dos adultos

As crianças Fantine Harduin ("Happy End"), Ahn Seo-Hyun ("Okja"), Millicent Simmonds ("Wonderstruck") e Addison Riecke ("O Estranho que Nós Amamos") - Divulgação
As crianças Fantine Harduin ("Happy End"), Ahn Seo-Hyun ("Okja"), Millicent Simmonds ("Wonderstruck") e Addison Riecke ("O Estranho que Nós Amamos")
Imagem: Divulgação

Bruno Ghetti

Colaboração para o UOL, em Cannes (França)

25/05/2017 12h45

No ano em que celebra seus 70 anos de existência, Cannes voltou seu foco para as crianças. Nem tanto para os filmes que as trazem como o “centro” da ação, mas para obras que buscam, por meio de uma marcante presença infantil, trazer um contraste de delicadeza e inocência para um mundo comandado por adultos cada vez mais egoístas, vazios e materialistas.  A seleção oficial do evento trouxe neste ano vários atores mirins que chamaram a atenção tanto pela força de suas personagens como, também, pelo seu talento em cena.

Uma das estrelas desta edição foi a menina Fantine Harduin, do elenco de “Happy End”, do austro-alemão Michael Haneke. O filme é um dos mais indigestos do cardápio selecionado pelo evento francês: fala de assuntos como alcoolismo, suicídio, perversão sexual e o apartheid social causado pela imigração na Europa. A loirinha, que interpreta um dos membros de uma família burguesa e decadente, relata o vazio e as angústias de sua vida em melancólicos snapchats. E consegue atuar de igual para igual com gigantes do cinema, como os colegas de elenco Isabelle Huppert e Jean-Louis Trintignant.

Na entrevista coletiva do filme, Fantine cativou os jornalistas pela meiguice. “Trabalhar com Haneke foi ótimo, porque ele é super gentil”, disse, arrancando risadas dos presentes (já que o cineasta não é conhecido pela simpatia).

Outra criança que atuou em um filme bastante “barra pesada” foi o russo Matvey Novikov. Em “Loveless”, de Andrey Zvyagintsev, é apenas quando seu personagem some inexplicavelmente que os adultos deixam de lado seu próprio egoísmo para repararem nas pessoas ao redor. Novikov interpreta Alyosha, um pré-adolescente que precisa lidar com a indiferença do pai e a crueldade da mãe, em uma existência solitária e opressiva. Ele é o espectador de situações duríssimas aos olhos de uma criança – o russinho tem umas das cenas mais fortes do festival, quando cai em prantos ao ouvir, escondido, que é um estorvo na vida dos pais.

Cena do filme "Okja", produzido pela Netflix - Divulgação - Divulgação
A menina Ahn Seo-Hyun com Tilda Swinton em "Okja"
Imagem: Divulgação

Também solitária em meio a adultos com valores duvidosos, a pequena Mija, de “Okja”, enfrenta poucas e boas para manter a própria sanidade quando precisa amadurecer de uma hora para a outra. No longa da Netflix, dirigido por Bong Joon-Ho, a menina Ahn Seo-Hyun interpreta uma camponesa que cuida de um porco gigante, desenvolvido em laboratório, mas criado nas montanhas da Coreia do Sul. Quando uma multinacional alimentícia quer extrair a carne do animal, Mija inicia uma grande e perigosa aventura na tentativa de salvá-lo.

Uma estrela-mirim em sua Coreia do Sul natal, Ahn tem tudo para agora se tornar conhecida mundialmente. Ainda precisa dominar melhor a timidez que mostrou na conversa com jornalistas – o que, no entanto, não a impediu de se expressar. “No começo das filmagens, eu adorava comer carne. Mas depois que começamos a rodar o filme, passei a entender melhor aquilo pelo qual os animais passam”, disse. “Adotei, então, a mesma postura de minha personagem: não vou mais comer tanta carne como antes”, contou a atriz.

Um dos destaques do sueco “The Square", de Ruben Östlund, também é um garoto que esbraveja para conseguir o que quer. Após se sentir prejudicado por um homem rico e importante, o rapazote não dá a mínima para as diferenças sociais: vai esperá-lo na porta de sua casa e exigir que se desculpe. E há também no filme uma criancinha loira, tipicamente sueca, usada em uma peça publicitária, em um vídeo em que... explode! Bom, é tudo trucagem, mas a cena da falsa explosão da menina define os rumos do filme, mostrando ao espectador como determinadas tipificações infantis têm um efeito de comoção diante da sociedade.

Estranho ao universo infantil, Todd Haynes mudou pela primeira vez o foco de sua obra, em “Wonderstruck”. O filme se divide em duas partes: a primeira, nos anos 1920, mostra uma garota surda e muda (vivida por Millicent Simmonds, deficiente auditiva também na vida real), que foge de casa para ir atrás de sua estrela de cinema favorita. Na outra parte da trama, um rapazinho (Oakes Fegley) escapa da casa onde mora para descobrir a identidade do pai – em sua aventura, conhece outro menino (Jaden Michael), de quem se torna amigo.

Simmonds respondeu às perguntas dos jornalistas na entrevista coletiva por meio de linguagens de sinais. “Todos foram muito amistosos, [a experiência] foi algo de que nunca vou me esquecer”, disse a atriz mirim, que foi escolhida por meio de vídeos, selecionados por Haynes, que fez questão de uma deficiente auditiva para o papel.

Mas nem só crianças boazinhas passaram pela Croisette nos últimos dias. Em “The Killing of a Sacred Deer”, o irlandês Barry Keoghan interpreta um adolescente de 16 anos (embora o ator tenha 24 na vida real) que inferniza a vida de um médico para se vingar: uma operação cardíaca malsucedida levou seu pai à morte, e o rapaz acha que o cirurgião (Colin Farrell) foi o culpado. O rapazote se infiltra na casa do doutor e passa a influenciar as crianças, de maneira algo sobrenatural: a menina Raffey Cassidy e o garotinho Sunny Suljic logo ficam doentes, à beira da morte, por conta da presença algo satânica do adolescente. Nicole Kidman, uma das protagonistas, comentou como se relaciona com os iniciantes: “É o que tento fazer com os novos talentos: proteger e guiá-los [em cena]”, disse a loira.

Nicole também mostrou em Cannes outro longa com garotas que se destacam. O filme “O Estranho que Nós Amamos”, de Sofia Coppola, se passa no século 19 e mostra um internato feminino que acolhe um soldado ferido. As meninas da casa são bem mais espertas que seus rostos angelicais fazem supor – uma delas, interpretada pela promissora Addison Riecke, é quem dá a sugestão que vai fazer com que o filme tome um rumo radical em sua reta final.

“Foi incrível ter a chance de ficar submersa em um tempo tão diferente dos dias atuais. E ver um trabalho tão duro vir ser exibido em Cannes é muito especial”, disse Riecke, na conversa com os jornalistas. Já a colega de elenco Angourie Rice mostrou um discurso um pouco menos ensaiado, destacando que Cannes pode, também, ser uma experiência assustadora: “É uma loucura, na verdade intimidante... Especialmente as sessões de fotos”.

Tomara que tenha servido de treino, porque, se ela e os coleguinhas de geração pretendem voltar a Cannes no futuro, precisarão lidar com os flashes várias outras vezes.

Cannes - Divulgação - Divulgação
Cena do filme "O Estranho que Nós Amamos", de Sofia Coppola
Imagem: Divulgação