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"1984": O livro de Orwell e as semelhanças preocupantes com os EUA de Trump

Personagem Winston, de "1984", e a teletela de seu apartamento - Divulgação
Personagem Winston, de "1984", e a teletela de seu apartamento Imagem: Divulgação

Felipe Branco Cruz

Do UOL, em São Paulo

01/02/2017 17h37

Há uma semana no primeiro lugar do ranking dos livros mais vendidos da Amazon, nos Estados Unidos, o livro "1984" foi escrito, nas palavras do próprio autor, George Orwell, como "uma mostra das perversões que já foram parcialmente realizadas pelo comunismo e fascismo".

24.jan.2017 - O presidente Donald Trump assinou a ordem executiva que retira os EUA do acordo econômico no seu terceiro dia no poder - Evan Vucci/ AP - Evan Vucci/ AP
Donald Trump assina ordens executivas em seus primeiros dias de governo
Imagem: Evan Vucci/ AP
Embora tenha sido lançado em 1949, a obra, curiosamente, voltou ao topo do ranking após a assessora americana Kellyanne Conway chamar de "fatos alternativos" a versão de que a posse do presidente Trump foi a mais concorrida da história, embora fotos comparativas mostrassem o contrário.

Imediatamente, a declaração da secretária foi relacionada pela imprensa americana ao conceito de "duplipensar", que permeia a obra de Orwell. A palavra significa em novilíngua "manter duas crenças contraditórias na mente simultaneamente, aceitando ambas".

Obviamente que os Estados Unidos não são comunistas e Donald Trump lidera hoje a maior democracia do mundo. Porém suas declarações furiosas no Twitter despertaram em todo o mundo o receio de que o país pudesse se transformar em uma nova "Oceania" (nome fictício do país comandado pelo Grande Irmão).

Abaixo, listamos algumas situações descritas em "1984" que contêm semelhanças preocupantes com a nova realidade americana.

Novo "1984"?

"Guerra é paz":

O lema do IngSoc (partido dominante em "1984") é: "Guerra é Paz. Liberdade é Escravidão. Ignorância é Força". Ou seja, um lema formado por palavras antagônicas. Na semana passada, Trump afirmou que acredita no uso da simulação de afogamento (uma forma de tortura) para obter informações em interrogatórios, mas que a decisão de usá-la será da CIA. "Devemos combater o fogo com fogo", disse o presidente.

"Duplipensar" e "Novilíngua":

Após a desastrada declaração Kellyanne Conway a respeito de "fatos alternativos", o conceito de duplipensar voltou à tona. Em "1984", o IngSoc desenvolve uma nova língua, batizada de novilíngua, para substituir a anticlíngua (inglês). A língua, ainda em construção, quando estivesse completa, impediria que as pessoas tivessem a capacidade de expressar qualquer opinião contrária ao governo. 
 
Veja abaixo uma frase escrita de novílingua e a sua tradução em português:
 
Em novilíngua: "times 3.12.83 notícia ordemdia gi duplipusimbom refs impessoas reescreve compl subsuper prearquivo"
 
Em português: "A notícia da Ordem do Dia do Grande Irmão no Times de 3 de dezembro de 1983 é extremamente insatisfatória e faz referência a pessoas não existentes. Reescreve por completo e submete a minuta à autoridade superior antes de arquivar."
 
Guerra permanente:
 
Há na obra de Orwell o conceito de Guerra Permanente. Ou seja, as três últimas grandes potências mundiais (Oceania, Eurásia e Lestásia) estão em guerra permanente uma com as outras pela disputa de um grande território na África. Ao analisarmos a história dos Estados Unidos, desde a Segunda Guerra Mundial, o país viveu poucos anos de paz, com conflitos na Península da Coreia, no Vietnã, no Iraque, no Afeganistão e a Guerra ao Terror no Oriente Médio.
 
Em "1984", o personagem principal conclui: "Em determinado momento, seria absolutamente impossível saber com quem estávamos em guerra, já que nenhum registro escrito nem palavra oral jamais faziam menção de outro alinhamento de forças diferente do atual. Desde mais ou menos aquela época, a guerra fora literalmente contínua, embora a rigor não fosse sempre a mesma guerra".
 
"Pós-Verdade":
 
O termo "Pós-Verdade" foi escolhido pela Universidade de Oxford como a palavra do ano em 2016. O termo diz respeito ao entendimento das pessoas em relação a uma notícia, quando os fatos objetivos têm menos importância do que as crenças pessoais. A Oxford avaliou que a a verdade está perdendo importância no debate político. 
 
Em seus tuítes, Donald Trump ataca adversários e aponta erros em reportagens da imprensa sem apresentar dados que comprovem as suas afirmações. Boa parte dessas mentiras circula pelas redes sociais como se fossem verdades. 
 
Uma reportagem da revista "The Economist" relatou que mentiras sempre existiram na política, porém as mentiras de Trump atingiram um novo patamar. Por exemplo, em um dos tuítes de Trump, ele afirmou que Barack Obama é o fundador do Estado Islâmico
 
Em "1984", o principal exemplo de pós-verdade é a atuação do Ministério da Verdade, que entre as suas funções, reescreve as notícias dos jornais antigos, adequando as informações à realidade atual do país. Desta forma, o governo nunca está errado.
 
Há ainda o Ministério do Amor, que tortura os dissidentes no temível quarto 101, o Ministério da Fartura, que divulga boletins exagerados sobre a produção de bens e alimentos e o Ministério da Paz, que cuida da guerra permanente. 
 

Vigilância permanente

O ex-agente da NSA (Agência de Segurança Nacional), Edward Snowden, revelou que a agência espionou sem autorização milhares de pessoas e líderes de países parceiros dos Estados Unidos, inclusive o Brasil. Segundo ele, a NSA seria capaz de interceptar praticamente qualquer troca de informações no mundo. Com o auxílio de satélites e drones, os Estados Unidos conseguem também vigiar qualquer espaço a céu aberto no mundo.

Atualmente, há poucas ruas, casas, lojas e condomínios sem câmeras de segurança gravando as movimentações 100% do tempo. A paranoia com a vigilância é tanta que o criador do Facebook, Mark Zuckerberg, e o diretor do FBI, James Comey Jr., tampam com fita adesiva as webcams de seus notebooks.

Com tanta vigilância, é fácil comparar o mundo atual com o de George Orwell em "1984". O livro descreve pequenos helicópteros (drones) que filmam dentro das casas das pessoas, além de microfones secretos escondidos nas ruas e, claro, as teletelas.

No livro, as teletelas são descritas como "placas metálicas retangulares com um espelho fosco embutidas nas paredes". É impossível deixá-las no mudo, embora seja possível abaixar o volume. A programação basicamente é feita de notícias oficiais exaltando os feitos do governo. Elas também são equipadas com câmeras que transmitem imagens em tempo real para a Polícia do Pensamento.