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História da Rocinha e papel do Estado mostram que é ingênuo ter esperança

Rodrigo Casarin

27/09/2017 09h43

Na semana passada, quando o governo anunciou que quase 1000 homens do exército seriam enviados para controlar os acessos à Rocinha, vi muita gente comemorando como se fosse a mágica para resolver os problemas do lugar. Na ocasião, algumas pessoas me questionaram: como podem acreditar em solução fácil para a Rocinha? Será que esse povo nunca assistiu "Narcos" ou "Tropa de Elite" para saber quão complexo é tudo o que envolve o tráfico de drogas? Pois lendo "O Dono do Morro", livro-reportagem do britânico Misha Glenny sobre Nem, antigo líder do tráfico em tal favela, fica evidente que a realidade é ainda pior do que apresentam as ficções cinematográficas.

Publicada no Brasil pela Companhia das Letras (que poderia ter dado uma atenção melhor à edição e evitar diversas informações desnecessariamente repetidas ao longo do texto), a obra mostra como a paz na Rocinha – e em qualquer lugar com as mesmas características – depende da estabilidade de um sensível esquema que envolve povo subjugado e bandidos de todos os tipos: traficantes que respondem a facções diversas, soldados do tráfico, policiais corruptos, policiais prevaricadores, agentes do jogo político… Quando algum desses elementos deixa de ganhar ou se sente de alguma forma ameaçado com o que acontece dentro da comunidade, normalmente instala-se o pandemônio.

Está longe de ser uma novidade que o Estado, por conta de seus problemas estruturais e de sua ausência em boa parte do território nacional, é o responsável direto para que tudo isso ocorra. A própria história de Nem é um exemplo disso: subiu o morro pela primeira vez para pedir R$20 mil emprestado a um traficante para que pudesse pagar pelo tratamento de um problema raro, Histiocitose X, que médicos detectaram em sua filha. Como não tinha garantias para pedir empréstimo no banco e a saúde pública não dava conta de tratar a pequena, viu no tráfico uma chance de salvar o rebento.

Salvou e na criminalidade cresceu, tanto que se tornou o chefão do comércio de drogas na região. Era tido como um bom "Dono do Morro", que encontrava respaldo da população local ao desempenhar bem o papel regulador, inclusive legislador, que deveria caber ao Estado. Durante boa parte dos quatro anos que esteve comandando a Rocinha, a favela viveu tempos de paz.

No entanto, o ciclo dos grandes traficantes costuma se repetir: crescimento, tomada do poder (seja por golpes, seja ocupando espaços deixados por outros bandidões), apogeu e a invariável queda. Pelo que Glenny dá a entender na obra, Nem, hoje preso em Rondônia e acusado de ser um dos cabeças por trás do atual caos na Rocinha, planejou a sua própria suposta retirada; não aguentava mais a pressão de ser o responsável por garantir a estabilidade do esquema criminoso que arquitetara.

Polícia que cobra pra prender

"Para olhar esse período, você precisa se desprender da ilusão de que a polícia estava agindo como órgão para fazer valer a lei. Era simplesmente uma das partes em guerra, disputando o controle financeiro sobre as favelas e o tráfico de drogas", explica um ex-consultor da Secretaria de Segurança Pública no livro de Glenny. O período, no caso, é a década de 90. Em "O Dono do Morro", são incontáveis os exemplos dos problemas da polícia, seja s Militar, seja a Civil – a Federal também tem suas mazelas, mas, aparentemente, em uma quantidade menor.

Como agora falarei da questão policial, importante lembrar aos estridentes que a polícia é extensão do Estado e não cabe a nenhuma parte do Estado burlar as leis criadas pelo próprio Estado. Se não, Poder constituído e poder paralelo se tornam exatamente a mesma coisa: organizações criminosas.

Duas passagens do livro beiram o surreal. Na primeira, Lulu, um dos antigos chefões do tráfico na Rocinha, queria deixar o negócio, mas forças policiais não tinham interesse nisso. Ele "estava visitando sua mãe na Paraíba quando quatro mascarados da Polícia Civil do Rio invadiram a casa e o jogaram num carro. Os policiais tinham percorrido 2400 quilômetros para realizar essa missão e estavam, claro, fora de sua jurisdição. Mero detalhe. Lulu era uma figura importante demais na complexa economia da corrupção carioca para permitirem que ele saísse. A polícia o obrigou a voltar a suas atividades de chefe", relata o autor.

Na outra, o jornalista recorda de um fato que Nem contara a dois agentes da polícia com quem negociava uma possível rendição. Em certa ocasião, tinha mandado que "seus soldados entregassem um estuprador à Polícia Militar. Seus homens voltaram e disseram que os PMs estavam exigindo 10 mil reais. 'Não', respondeu Nem, furioso. 'Não queremos que soltem o cara. Voltem lá e expliquem que a gente quer que prendam ele!' Mas então seus homens explicaram que os policiais queriam 10 mil reais para prender o estuprador. 'Em que tipo de mundo estamos vivendo', pergunta Nem a Otávio e Renata, em tom desesperançado, 'quando a gente precisa pagar a polícia para prender os criminosos?'".

Favelas dominadas por milícias, relatos de policiais de UPPs que também atuam como milicianos e o caso de Amarildo, ajudante de pedreiro que foi torturado, assassinado dentro de uma da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha e teve seu corpo ocultado pelos próprios policiais, só comprovam que a melhor maneira do Estado conseguir entrar na favela e criar algum vínculo com a população definitivamente não é por meio do seu braço armado, há muito extremamente mal visto pelos moradores locais – e não só os locais, diga-se.

Como bem lembra o jornalista na obra, "em 2012, a Comissão de Direitos Humanos da ONU recomendou o desmantelamento da Polícia Militar em todo o Brasil, em reação ao que alguns membros da comissão consideravam níveis inaceitáveis de 'execuções extrajudiciais'".

Esperança?

De bandidos não podemos esperar nada; da polícia, podemos – ou deveríamos poder. Entretanto, claro, há gente acima disso tudo diretamente responsável pela atual realidade da Rocinha e de muitos outros cantos do Brasil. No livro mesmo, Glenny mostra como Nem apoiou um candidato que conseguiu se eleger para vereador do Rio, o que apenas escancara a relação que há entre as diversas faces do crime e a política. Em outro momento, usa meias palavras para deixar o leitor ainda mais alerta:

"Ouvi relatos minuciosos que descreviam como os setores políticos estabeleceram relações diretas e indireta com Nem para garantir sua influência entre os eleitores e na economia da favela. Mas, embora tais relatos sejam convincentes, não disponho de provas documentais nem de depoimentos juramentados, pois as testemunhas têm muito medo de falar. E elas são absolutamente claras ao explicar que não é de Nem que têm medo, e sim do pessoal do governo. Nem insiste que 'conheço segredos que, se eu contasse, derrubariam várias carreiras políticas importantes'. Por mais que eu tente convencê-lo a revelar esses segredos, ele não fala. Creio que Nem também tem medo, mas não duvido dele nem por um instante".

Aí voltamos à questão do exército cercando a Rocinha. Ele resolverá alguma coisa? Pode até ajudar a trazer um cessar-fogo momentâneo, somente isso. Quando saírem, algum poder paralelo fatalmente tomará conta do lugar de novo, e é provável que a guerra por esse poder volte a se intensificar até que alguém consiga alcançá-lo e dar certa estabilidade à região, estabilidade que será novamente abalada quando tal poder começar a ruir, voltando ao ciclo vicioso.

O que é necessário? Arrisco dizer que o óbvio: que o Estado chegue aos moradores da favela, que eles tenham infraestrutura, a começar pelo saneamento básico, saúde, educação, transporte e empregos decentes, dignamente remunerados… Que o Estado equipe, forme e remunere suas forças policiais de maneira digna, mas que também as fiscalize e puna exemplarmente todos que deveriam zelar pela lei, porém seguem o caminho do crime. E, claro, que os políticos que comandam o próprio Estado não sejam eles mesmos os bandidos, como estamos vendo abundantemente por aí. Sei que é um discurso óbvio, até um clichê, mas há clichês que precisam ser repetidos.

Em um país no qual os próprios governantes são quase sempre os primeiros a descumprir as regras, lembro de Renato Russo em "Natália": "ter esperança é hipocrisia". E se não for hipocrisia, é ignorância ou ingenuidade.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.