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Colonizador bonzinho? Portugal começa a rever as barbáries do seu passado

Rodrigo Casarin

28/09/2017 09h26

"Navio Negreiro", quadro de Johann Moritz Rugendas.

O momento mais marcante da Flip deste ano foi a surpreendente intervenção da professora Diva Guimarães, que, ao pegar o microfone para fazer uma pergunta, desabafou sobre como sua vida foi marcada pelo racismo (vídeo abaixo). A declaração aconteceu em uma mesa na qual Lázaro Ramos era a atração mais aguardada. Tudo isso fez com que as falas de Joana Gorjão Henriques, que dialogou com o ator e com Robinson Borges, jornalista que fez a mediação, acabasse ficando em segundo – ou terceiro – plano. Uma pena, pois o trabalho de Joana, além de ótimo, é de extrema importância.

Joana é autora de "Racismo em Português", publicado por aqui pela Tinta da China. O volume reúne reportagens assinadas pela jornalista e primeiro publicadas em série no jornal Público. São histórias coletadas em Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Moçambique, cinco países africanos colonizados por portugueses, que desmontam a tese ainda vigente em Portugal – e trabalhada em sala de aula, inclusive – de que os lusitanos teriam sido bons colonizadores. "Escrevi este livro por causa da minha revolta com a forma como os portugueses negros são tratados por portugueses brancos", já assume a autora na introdução da obra.

"Facilmente nos cruzamos com portugueses que se vangloriam dos feitos dos Descobrimentos, que alegremente descartam a violência da escravatura e recusam lembrar-se de que fomos o país que traficou a grande maioria dos 12 milhões de escravizados arrancados de África à força, pela simples razão de serem negros", escreve Joana. "O colonialismo português foi muito hábil na forma perversa como dividiu para reinar as suas colônias: dentro de cada território ou país ocupado — criando sistemas divisórios, como o código do indigenato, e acicatando guerras étnicas — e entre os diferentes territórios ou países africanos colonizados — gerindo o movimento das populações entre as colônias e criando hierarquias entre elas".

Joana na Flip, ao lado de Lázaro Ramos.

Em entrevista por e-mail, Joana conta que ao longo das viagens pela África o que mais lhe surpreendeu foram as histórias de violência e opressão que ouviu. "Por mais que tivesse lido que a versão do colonialismo que aprendi na escola não era a verdadeira, ter a possibilidade de ouvir relatos na primeira pessoa do racismo praticado por portugueses e pelo sistema colonial foi altamente chocante".

Cita como exemplo uma passagem na qual a escritora moçambicana Paulina Chiziane, autora de "Balada do Amor ao Vento", primeiro romance publicado por uma mulher em Moçambique, em 1990, lhe contou. "Uma professora, numa aula, ao ver que ela tinha a melhor nota da turma, rasgou o teste e disse: 'seus brancos, até a preta teve melhor nota que vocês'". Também menciona um caso de Guiné-Bissau, onde pessoas com nomes da cultura muçulmana foram obrigadas a trocá-los por algum comum ao Ocidente. "São dois pequenos exemplos de racismo aparentemente menos brutal do que a violência física, mas que deixam marcas enormes nas pessoas e mostram a desumanização do sistema. É preciso dizer que nada disso se passava sem resistência: as pessoas tinham bem consciência da opressão a que estavam sujeitas".

Joana também diz ser chocante que tudo isso ainda aconteça, de algum modo, nos dias de hoje. "Passados tantos anos, as dinâmicas se reproduzam e se reatualizam de outras formas: se pensarmos em Angola e Moçambique, por exemplo, para onde emigraram muitos portugueses por causa da crise econômica em Portugal, ainda há quem tenha uma atitude neocolonialista".

Paulina Chiziane.

Outras vozes

A autora não é voz solitária em defender que Portugal reveja sua relação com o próprio passado e assuma seus problemas enquanto colonizador. Na Flipelô, que aconteceu em agosto, em Salvador, Alexandra Lucas Coelho, também jornalista portuguesa e autora de "Deus-Dará" (outro da Tinta da China), fez discurso semelhante na mesa da qual participou. Joana explica que há diversos movimentos sociais antirracistas neste momento em Portugal, bem como intelectuais negros portugueses "colocando estas questões em cima da mesa" e a academia se esforçando para "desconstruir a narrativa dominante" em suas pesquisas.

"O que pode estar a mudar neste momento é que os grupos antirracistas estão mais fortes e têm continuamente colocado estas questões no debate, ao mesmo tempo que uma série de pessoas estão a se preocupar com a forma como a narrativa do bom colonizador continua a ser veiculada. O fato de o 'Racismo em Português' ter sido publicado em série de reportagens ao longo de vários meses num jornal nacional, e de justamente dar o outro lado da história colocando esse tema em evidência, também contribuiu para que o tópico chegasse a mais gente, ampliando o alcance do debate. O que agora tem de acontecer, e de forma urgente, é a mudança dos conteúdos escolares – isso será determinante para criarmos cidadãos mais bem informados e tolerantes", acredita ela, que vê a sociedade percebendo esse movimento de maneira dividida. "Há quem tenha ficado contente por ter trazido para a grande mídia esse tema e sublinhe a necessidade de continuar a colocá-lo na agenda, e há quem continue agarrado ao passado com saudosismo".

E como o Brasil se encaixa nesse panorama do colonialismo racista português? "Olha é difícil responder porque eu, apesar de ter feito uma reportagem sobre o racismo no Brasil, não usei a lente do colonialismo como nas outras cinco reportagens em África. Então acho que seria interessante um dia partir dessas questões e entrevistar brasileiros sobre a forma como eles olham para as heranças coloniais e também para a ideologia lusotropicalista de Gilberto Freyre que teorizou sobre a existência de uma falsa democracia racial no Brasil", responde.

No entanto, na introdução de "Racismo em Português" ela fala da pertinência do livro para nós: "Apesar de o Brasil e as ex-colônias de África terem uma história colonial distinta, há uma ligação intrínseca criada por Portugal. Afinal, chegaram ao Brasil cinco milhões de escravizados traficados de África, cerca de metade de todo o tráfico transatlântico mundial. Por isso, a publicação deste livro no Brasil é, de certa forma, um passo natural".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.