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Entre a censura e o esquecimento, canções retratam universo LGBT no Brasil

Ney Matogrosso durante apresentação do show "Atento aos Sinais" - Divulgação
Ney Matogrosso durante apresentação do show "Atento aos Sinais" Imagem: Divulgação

Do UOL, em São Paulo

28/10/2016 19h45

Nem sempre a mensagem é explícita, mas não falta, na trajetória da música brasileira, histórias e declarações de amor do universo LGBT. Antes mesmo de Liniker, As Bahias e a Cozinha Mineira e Rico Dalasam, muitas canções documentaram as transformações do movimento, entre aceitação e censura, fantasia e realidade.

Foi atrás desses "documentos musicais" que o pesquisador Renato Gonçalves escreveu o livro "Nós Duas - As Representações LGBT na Canção Brasileira”, lançado neste mês por meio do Programa de Ação Cultural (ProAC) do Governo do Estado de São Paulo e a editora independente Lápis Roxo. A publicação destaca uma expressão que aparece em "Bárbara", canção de Chico Buarque e Ruy Guerra, lançada em 1973, e que foi censurada pela ditadura da época por indicar um momento de intimidade entre duas mulheres.

"Nós Duas" analisa as representações LGBT na canção brasileira - Divulgação - Divulgação
"Nós Duas" analisa as representações LGBT na canção brasileira
Imagem: Divulgação
Na gravação que chegou às lojas naquele ano, no disco "Chico Canta", a canção foi mutilada e o trecho abruptamente cortado do verso: "Vamos ceder, enfim, à tentação das nossas bocas cruas / E mergulhar no poço escuro de nós duas". "Falamos muito que a ditadura censurou apenas a questão política, mas censurou também a sexualidade. Não foi apenas 'Cálice'", observa Gonçalves, citando a famosa canção de Chico, censurada no mesmo ano. "Isso é prova que o corpo e a sexualidade são espaços políticos em disputa".

Antes mesmo de chamar atenção dos milicos, essa representação passou por um período de silenciamento, como foi o caso de Tuca. A cantora paulista transgrediu a cena na época ao escrever canções para outra figura feminina, mas acabou no esquecimento. "Pode ser uma questão de circulação, mas pode ser também a retenção de quem institucionaliza o que é bom ou ruim. As expressões LGBT foram deixadas de lado na história, e até mesmo silenciadas, no sentido de que não se dar ênfase na transgressão que se é", explica.

Na época, Tuca teve seu segundo álbum, "Drácula, I Love You", lançado em 1974 pela gravadora Somlivre, uma das mais representativas da época. O DJ e pesquisador Zé Pedro tentou relançar o trabalho, nunca reeditado em CD, mas foi impedido por questões de direitos autorais. Tuca morreu sem deixar herdeiros e sua família até hoje é difícil de se localizar. O disco, no entanto, corre livremente no YouTube.

A época, contudo, foi de contradições. Ao mesmo tempo em que Tuca lançava seu primeiro álbum, Ney Matogrosso rebolava e representava, no horário nobre na TV, uma verdadeira revolução sexual. Como um personagem, o cantor é um dos exemplos da aceitação da questão LGBT, mas que não encontra o mesmo respaldo na realidade. "É um contraditório do Brasil que se reflete na música", pontua Gonçalves. "No Carnaval, os homens se vestem de mulher, mas passou o Carnaval, tudo volta ao normal. Existe uma aceitação, mas acaba sendo um modelo para ser admirado, não imitado. É uma aceitação até certo ponto."

O livro indica que a transgressão vai além de Ney Matogrosso ou da "tradição" de cantora de MPB lésbica. "Existem outras formas de expressão, e a sexualidade é mais diversa do que isso".

Se antes essa representação servia como resistência social, agora ela é um espaço de transgressão e afirmação, no trabalho de artistas como Liniker, MC Linn da Quebrada e Rico Dalasam. "Hoje a gente vê essa onda, como fruto de uma teoria 'queer' que tem sido difundido nos últimos anos. Esses artistas vieram para ficar não só pela força do público, mas também pela qualidade estética, são trabalhos que têm fundamento e muita verdade", observa. "E uma coisa que eu acho mais interessante, é que não é mais branca, e não é só mais MPB. Está no funk e está no rap."

O universo gay na música brasileira:

  • Folhapress

    "Bárbara", Chico Buarque (1973)

    O compositor carioca já cantou a saga de uma travesti em "Geni e o Zepelim" e narrou a história de um casal lésbico em "Mar e Lua", mas foi com "Bárbara" que ele incomodou de fato o regime militar. No disco "Chico Canta", com músicas da peça "Calabar", a expressão "nós duas" é cortada na versão final por expor o desejo entre duas mulheres.

  • Divulgação

    "O Vira", Secos e Molhados (1973)

    No palco e em seus discos, Ney Matogrosso tornou-se uma das maiores referências LGBT na música, com alegorias, insinuações sexuais e subversões de gênero, como nos hits "Homem com H" e "O Vira". Porém, mesmo sendo um ícone, o pesquisador analisa que o cantor é um dos exemplos da aceitação no plano da fantasia, mas que não encontra o mesmo respaldo na realidade. "É um contraditório do Brasil que se reflete na música".

  • Divulgação

    "Girl", Tuca (1974)

    A cantora e compositora Tuca não entrou para a história. A cantora que chegou a morar em Paris e colaborar com discos de Françoise Hardy, deixou pelo menos um disco transgressor. Em "Drácula, I Love You", ela assumiu um discurso homossexual, como em "Girl", na qual o eu lírico faz um convite à outra mulher: "Não tenha medo / Você não vai se machucar".

  • Marcos Hermes

    "Paula e Bebeto", Milton Nascimento (1975)

    "Qualquer maneira de amor vale à pena / Qualquer maneira de amor vale amar". Na visão do pesquisador, os versos de Milton compreendem o sentimento como poucos, sem necessariamente ser uma canção gay e tampouco o compositor uma figura ligada ao movimento. "É uma canção que não fala especificamente, mas que agrupa todas as expressões da sexualidade", explica Gonçalves.

  • JMBôscoli/UOL

    "A Nível De...", João Bosco (1982)

    De João Bosco e Aldir Blanc, a música do álbum "Comissão de Frente" (1982) narra a troca realizada entre dois casais hétero que se descobrem homossexuais. "Vanderley e Odilon bem mais unidos empataram capital / E estão montando restaurante natural cuja proposta é cada um come o que gosta", diz a letra

  • Manuela Scarpa/Brazil News

    "Mesmo que Seja Eu", Marina Lima (1984)

    Uma das artistas mais importantes na representação LGBT na MPB, com canções como "Anna Belle", "Valeu" e "Na Minha Mão", Marina também subverteu a heteronormatividade ao regravar a canção de Erasmo Carlos, mantendo a figura masculina no refrão: "Mesmo que seja eu / Um homem para chamar de seu".

  • Amanda Perobelli

    "Amor Mais que Discreto", Caetano Veloso (2007)

    A canção, gravada pela primeira vez por Caetano no disco "Multishow Ao Vivo - Cê" (2007), traz a declaração de um personagem masculino a um rapaz mais jovem, através de imagens poéticas. O baiano se inspirou em um clássico da bossa nova, "Ilusão a Toa", de Johnny Alf. O verso "A conduzir o nosso amor discreto / Sim, amor discreto pra uma só pessoa" sempre foi relacionado a um relacionamento homossexual.

  • Reinaldo Canato/UOL

    "Não Posso Esperar", Rico Dalasam (2015)

    "Não posso esperar mais 10, 15 anos pra dizer como eu amo / Como é invisível esse elo". Rico foi um dos primeiros a levar essa representação para o rap. De modo geral, encabeça, junto com Liniker, MC Linn da Quebrada e As Bahias e a Cozinha Mineira, a fase mais mais libertária da música, em que a questão é exposta de maneira direta e afirmativa.