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"Vou cantar até o fim", diz Elza Soares, 79, ao iniciar turnê internacional

De Nova York

19/05/2017 19h11

A magérrima adolescente de uma favela do Rio de Janeiro, vestida com uma roupa emprestada pela mãe e ajustada com alfinetes, chegou em 1953 à rádio Tupi para cantar em troca de algum dinheiro para comprar remédios para o seu bebê doente.

"E você, de qual planeta você veio?", perguntou-lhe ironicamente o apresentador do programa, o famoso compositor Ary Barroso, fazendo piada por sua roupa grande demais, enquanto a plateia ria.

"Do mesmo planeta que o seu", disse Elza. "E qual é?", insistiu Ary, sem saber que a resposta entraria para a história da música popular brasileira. "O planeta Fome", lançou a adolescente, deixando todos estarrecidos.

Poucos minutos depois, boquiaberto ao escutar a jovem cantar "Lama", o apresentador decretava o nascimento de uma estrela.

"Não me esqueço desse diálogo. Não dá pra esquecer", disse Elza Soares, de 79 anos, em uma entrevista por telefone à AFP, alguns dias antes de embarcar para se apresentar no Town Hall de Nova York, nesta sexta-feira (19), com o show "A Mulher do Fim do Mundo".

O espetáculo se baseia em seu último disco, vencedor do prêmio de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira no Grammy Latino em 2016, um tipo de samba futurista que combina música eletrônica, art-rock e bossa-nova em canções inéditas.

A respeito da fala de Ary Barroso, a diva, cuja voz cativou o Brasil e o mundo, disse que ficou "meio triste. Porque eu era uma menina pobre, malvestida. Só cantava bem".

Em 1999, a rádio BBC a escolheu como a "cantora brasileira do milênio".

Após várias operações de coluna, Elza agora canta sentada, mas transborda energia. Depois de Nova York, entre o fim de maio e julho, fará shows em Barcelona, Porto, Roterdã e Roskilde.

Garrincha, "meu maior amor"

Elza Soares e Mané Garrincha - AP - AP
Elza Soares e Mané Garrincha após show da cantora em Roma, na Itália, em 1970
Imagem: AP

A vida a atingiu algumas vezes, mas também a transformou em um símbolo de resistência e coragem e, nos últimos anos, em figura de culto.

Aos 12 anos, seu pai a obrigou a se casar e, um ano depois, nasceu o primeiro filho. Teve sete filhos com seu primeiro marido, mas os dois primeiros, prematuros e desnutridos, morreram muito pequenos. Elza Soares confessa que chegou a roubar comida para alimentá-los. Aos 21 anos, já era viúva.

O verdadeiro amor aconteceu com o jogador de futebol Garricha, o "anjo das pernas tortas". Embora tivessem vivido uma relação complicada e violenta, Garrincha "foi meu maior amor, ele [ainda] é", confessa.

Sua lembrança preferida dele? Vê-lo "jogar futebol. Para mim foi o melhor jogador do Brasil. O maior".

Eles foram casados por 17 anos, mas Garricha, talvez o melhor exemplo da alegria no futebol e herói das conquistas das Copas do Mundo de 1958 e 1962, era alcoólatra e morreu de cirrose aos 49 anos.

Com Garrincha, Elza Soares adotou uma menina e teve um filho, apelidado de "Garrinchinha". O garoto faleceu aos nove anos, em um acidente de carro, quando ia visitar o túmulo de seu pai. A mãe de Elza também morreu em um acidente de automóvel.

Adepta da maquiagem dramática, da roupa de couro, de imensas perucas e de saltos altíssimos, Elza Soares nunca se queixou de sua vida.

"A vida tem sido dura comigo, mas eu vejo outros mundos também com a vida bem dura. Então, acho que a vida é dura para todo mundo", disse.

Na Copa do Mundo de 1962, no Chile, da qual foi a madrinha, Elza viveu "um encontro ma-ra-vi-lho-so" com o trompetista e cantor de jazz americano Louis Armstrong.

"Eu era muito criança, ele queria me levar para os Estados Unidos [para cantar], mas eu falei que não, porque tinha filhos, e ele não acreditou [...] porque eu era muito, muito novinha", conta.

Um saxofone na garganta

Elza Soares e banda Ipanema - Folhapress - Folhapress
Elza Soares em show no Rio de Janeiro com a banda Ipanema, em 1977
Imagem: Folhapress

Diz a lenda que Armstrong, impressionado com sua voz, afirmou que Elza Soares escondia "um saxofone na garganta".

Como a jovem não falava inglês, as piadas davam lugar a cômicos mal-entendidos. Armstrong a chamava de "daughter" (filha), e ela entendia "doutora". Depois, pediram que se dirigisse a ele como "my father" (meu pai), mas Elza entendeu que pediam que ela dissesse ao músico "me fode".

Desde sempre, a cantora levanta a bandeira da luta contra o racismo, o machismo, a violência doméstica e a homofobia. E hoje também denuncia a situação política e econômica no Brasil, que descreve como "caótica".

Sobre o gabinete do impopular governo de Michel Temer, inteiramente masculino, ela diz: "horrível, péssimo, é terrível".

Como gostaria de ser lembrada? "Como gente, como um ser humano normal", reflete, modestamente.

"Vou cantar até o fim. É o que eu mais gosto de fazer na vida", conclui.