O lucrativo mercado de instrumentos falsificados no Brasil
Estela Deunísio, violoncelista amadora de 25 anos, viu um anúncio de um violoncelo em uma comunidade no Facebook. Como quem anunciava o instrumento era membro de uma orquestra de Ribeirão Preto (SP), a musicista não desconfiou. Para o instrumento, supostamente feito de forma artesanal, foi pedido cerca de R$ 13 mil, mas as negociações fizeram o preço baixar para cerca de R$ 9 mil à vista.
Tudo levava Estela a crer que estava fazendo um bom negócio. "Eu confiei na palavra do cellista, até porque o instrumento soava bem e era bonito. Estava bem animada."
Uma semana após a compra, o cello foi levado a um luthier - profissional que repara e constrói instrumentos - para limpeza e ajustes. Eis que veio a surpresa. "O luthier, sem saber como agir, afirmou que aquilo era uma falsificação." Abismadas, Estela e a irmã Elaine tentaram desfazer a compra e reaver o dinheiro. O vendedor se recusou. "Ele não deu muita bola e falou para entrarmos com um processo mesmo", disse a violoncelista.
As duas levaram o instrumento ao luthier Leandro Mombach, que tem mais de 30 anos de experiência em luteria, para uma segunda avaliação. "Percebi logo que era um instrumento chinês, que vale no máximo R$ 3 mil", confirmou Mombach, que fez um laudo para ajudar no processo que a musicista está movendo contra o vendedor.
Caso ainda mais chocante foi o de uma mecenas da música residente em São Paulo, que comprou um quarteto de cordas - composto por dois violinos, uma viola e um violoncelo - supostamente de autor, por R$ 40 mil. "Na verdade, eram meros instrumentos chineses de fábrica que foram envelhecidos artificialmente", revelou o luthier Nilton Dias, sem citar o nome do comprador.
Esses são apenas alguns dos retratos da nota desafinada que vem tocando nas salas, orquestras e palcos do Brasil. A venda de instrumentos falsificados para e entre os músicos, em especial violinos, violas e cellos, preocupa o setor, mesmo sem haver números oficiais.
"Há uma clara subnotificação porque poucos querem se expor. Seja por medo ou para não serem motivos de chacota entre seus pares", afirma Mombach, que já viu vários casos semelhantes. "Uma vez eu alertei um violinista do perigo que corria ao continuar uma transação no mínimo esquisita. Ele acabou comprando por R$ 30 mil um violino que não valia R$ 3 mil."
Sem regulamentação
A luteria no Brasil ainda não é uma profissão reconhecida, e sim uma ocupação de acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações de 2002 (CBO 2002). O Ministério do Trabalho reconhece que "para o exercício dessas ocupações requer-se ensino fundamental concluído (reparador de instrumentos) ou ensino médio concluído (restaurador e luthier)."
Contudo, há anos já existe formação profissional disponível para interessados: um curso superior na Universidade Federal do Paraná e um técnico no Conservatório de Tatuí, interior de São Paulo.
Para Vlamir Ramos, professor deste último, essa dissonância entre a falta de regulamentação e a alta demanda cria uma quantidade difícil de precisar do que é chamado no ramo de "picarethiers" - os luthiers sem formação. "Hoje qualquer pessoa que se diga luthier pode ser procurada pelos músicos como tal. Não há nenhuma instituição de classe, seja particular ou governamental que credencie ou fiscalize os profissionais."
Por causa desse buraco negro, não há números precisos da quantidade de luthiers atuando no Brasil, mas é possível entender a alta da demanda a partir das necessidades daqueles que os empregam: os músicos. Desde 2004 o número de músicos profissionais cresceu 60%, aquecendo com isso o mercado de compra, venda e restauro de instrumentos musicais.
No caso de músicos de orquestras, também houve um expressivo aumento dos profissionais, puxado pela proeminência de orquestras vinculadas a igrejas de denominações cristãs variadas ou de Orquestras Sociais. Neste último, de acordo com um dossiê feito pela jornalista Heloisa Fischer no Anuário Viva Músicade 2012, existiam naquele ano cerca 92 projetos sociais que envolviam corpo orquestral.
Levando em conta que cada orquestra sinfônica ou filarmônica tem tradicionalmente dezenas de membros, e que mais da metade destes são da família dos instrumentos de cordas - isto é, composto majoritariamente por violinos, violas, violoncelos -, é possível ter uma dimensão, ainda que informal, do tamanho do mercado atual.
Vulnerabilidade
Até mesmo profissionais gabaritados já foram vítimas da falsificação de instrumentos - ou chegaram perto disso.
Samuel Pessati, violoncelista da Orquestra Sinfônica do Paraná, recebeu, em 2014, um email que o intrigou. "Uma pessoa queria vender um violoncelo, que ela dizia ser do século 17, herdado dos avós italianos. Pedia também urgência na compra porque precisava pagar um tratamento contra o câncer", relembra, adicionando ainda que esse vendedor não queria que nenhum luthier tocasse ou visse o instrumento.
Quando comentou o caso com um amigo, o também violoncelista Isaac Andrade, o enredo lhe chamou a atenção. "Lembrei que meu ex-professor há alguns anos havia recebido um email muito parecido, com a mesma história. Acabou comprando um cello falso por um valor bem alto."
Os dois cellistas resolveram então continuar a "compra" para investigar mais. Munidos de seus celulares e de uma pequena câmera, filmaram e fotografaram escondido o encontro com o suposto estelionatário, que pediu R$ 25 mil no instrumento. Durante a negociação, mandaram uma foto para seu ex-professor, que confirmou que era a mesma pessoa que lhe havia vendido um instrumento falso alguns anos antes.
A dupla então resolveu tirar satisfações com o vendedor e, após uma confusão generalizada na Rodoviária de Curitiba, fizeram um BO contra o homem. Contudo a venda não foi sacramentada, o que impossibilitou a ocorrência de um possível crime de estelionato passível de ser investigado.
A trajetória corrida desse vendedor é notória nas regiões Sudeste e Sul do Brasil - ele já foi conectado a dois outros casos de vendas fraudadas em Minas Gerais e Rio de Janeiro, com prejuízos de dezenas de milhares de reais para os músicos.
O luthier Ivan Guimarães, de São Paulo, afirma ter visto vários casos semelhantes em seu ateliê, como o de instrumentos de fabricação chinesa envelhecidos artificialmente. "Assim como o Stradivarius tinha um jeito de construir, esse fraudador também tem sua impressão digital em sua falsificação."
Comprovação difícil
Instrumentos de cordas como violinos, violas e violoncelos são notoriamente mais complexos de se certificar do que uma obra de arte.
Ao contrário de um quadro, cuja finalidade é estética, instrumentos são objetos do ofício do músico, e podem ter duas origens distintas. Os instrumentos de autor, feitos artesanalmente por nomes conhecidos como Stradivarius, Guarnerius e Amatis, são os mais procurados, antigos e caros, chegando a valer milhões de euros em casas de leilão.
Contudo, há luthiers para todos os bolsos e interesses, tanto os do século 19 quanto contemporâneos.
Já as réplicas, que existem em diversos níveis de qualidade e podem ser feitas ou por fábricas ou por luthiers, servem para pessoas que queiram um instrumento com a mesma aparência e sensação de um original de autor, sem o preço tão salgado. Nesse quesito pode entrar o envelhecimento artificial de um instrumento.
Sobre isso, o luthier Vlamir Ramos, do Conservatório de Tatuí, atenta que "existe o envelhecimento honesto, feito pelo próprio luthier a pedido do músico que queira ter um instrumento com cara de antigo. Porém, a diferença é a transparência na hora de uma possível revenda."
João Buratti, luthier de 23 anos de Ourinhos (SP), é um desses construtores que envelhece instrumentos para músicos que assim o queiram, e revela a anatomia do processo: "Existem diversas técnicas, como tirar o verniz com algodão embebido em álcool, machucar o instrumento para simular o uso extenso etc. No geral, envelhecer artificialmente um instrumento é bem simples."
Para luthiers com um mínimo de experiência é fácil também perceber o uso desse artifício em um instrumento de baixa qualidade ou mesmo uma recauchutagem em alguma cópia antiga.
A etiqueta de autoria, a primeira coisa em que muitos músicos sem conhecimento prestam atenção, é ainda mais fácil de falsificar. De acordo com o luthier Nilton Dias, que tenta combater esse tipo de fraude em São Paulo, "os criminosos vão em sebos, compram livros antigos já amarelados, recortam o papel e mandam para um calígrafo copiar a etiqueta de um luthier antigo e desconhecido."
Por isso, um dos conselhos dos luthiers é justamente não levar em conta o que está escrito na etiqueta.
Terminado esse processo de envelhecimento artificial, pode-se então inflacionar o preço do instrumento e reinseri-lo no mercado com valores que podem chegar ao tamanho da imaginação e da ganância do vendedor.
"Instrumentos sem origem definida, mesmo sendo bons, não podem passar muito de um determinado valor," explica Nilton, colocando que a diferença entre um instrumento de fábrica e um de autor é justamente o valor artesanal do trabalho de um luthier qualificado.
Entretanto, a alta no preço da importação de madeiras e ferramentas para o trabalho de luteria dificultam os lucros do sistema tradicional de construção, no qual o instrumento é talhado diretamente do bloco de madeira importada, em um processo que pode durar meses.
Nesse contexto, tem valido a pena importar instrumentos chineses, que vêm pré-montados, necessitando apenas de uma montagem, pequenos ajustes e de uma envernização.
De acordo com o luthier Daniel Diniz, de Guarulhos (SP), não são apenas os instrumentos chineses os alvos de falsificação. "Muitas lojas e luthiers aqui de São Paulo compram lotes de instrumentos velhos e defeituosos do Ebay europeu, sem etiqueta nenhuma, reformam, etiquetam com o que querem e revendem."
O preço, porém, não segue os padrões que se esperam para réplicas chinesas ou europeias de baixo custo. Pelo contrário. "Muitas vezes alguns desses luthiers e vendedores fazem um serviço porco em um instrumento que já é ruim, cheio de falhas e cobram mais caro do que um luthier que faz todo o serviço artesanalmente", afirma Leandro Mombach.
Cuidado com as histórias
Apesar de boa parte dos casos ter relação com instrumentos chineses, não são eles o problema, e sim o que é feito deles. Nilton Dias também ressalva que "só porque um instrumento é antigo, não quer dizer que ele seja bom".
Há, porém, aqueles mais desanimados com a situação atual do mercado. O luthier Leandro Mombach avisa que, para ele, 80% do que há atualmente no mercado é falso. "Hoje no Brasil eu não acredito em instrumento legítimo, autêntico de luthier, no mercado."
Praticamente todos os profissionais contatados comentaram que o mais importante na hora da compra é sentir-se conectado ao instrumento, independente de sua suposta origem, além de pesquisar bastante e não se deixar levar pelo emoção, nem por histórias boas demais para serem verdade.
Para Marcos Schmitz, luthier paulistano, é preciso muito cuidado para não cair nesses verdadeiros contos do vigário talhados especificamente para conquistar os corações dos músicos. "Muitas vezes, antes de comprarem um instrumento, os músicos acabam comprando uma história."
A violoncelista Estela hoje aconselha a todos os músicos que queiram fazer um investimento em um instrumento de melhor qualidade que entrem em contato com um luthier de confiança durante o processo de compra, ato que ela não fez e hoje se arrepende. "Minha inocência me fez achar que um colega não iria querer me enganar."
A advogada da musicista disse à BBC Brasil que o músico que vendeu o instrumento falso contestou o processo. "Ele disse que também foi vítima de uma fraude anterior, e indicou o vendedor original, o importador, para também virar réu no processo."
No caso do estelionato, que é definido na Código Penal Brasileiro como "obter, para si ou para outro, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento", o mais importante é ir à delegacia ou ao Ministério Público denunciar o ocorrido.
"Se for possível, peça a um luthier de confiança um laudo técnico que certifique a falsificação", comenta Elaine. "Com isso, será possível entrar com um processo de reparação civil, podendo até mesmo pedir indenização."
Embora não exista atualmente uma associação de luthiers ativa no país, alguns construtores estão tentando se unir para criar o que deve se tornar em breve a Associação Brasileira de Luteria.
"O Brasil está muito atrasado nesse quesito", afirma João Buratti.
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