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Arte sempre existiu na periferia, mas o preconceito cegou as pessoas, diz rapper Criolo

O rapper Criolo Doido em foto de janeiro de 2011 - Mateus Bruxel/Folhapress
O rapper Criolo Doido em foto de janeiro de 2011 Imagem: Mateus Bruxel/Folhapress

MARINA VERGUEIRO

Colaboração para o UOL

01/06/2011 00h06

Foi através do codinome Criolo Doido que Kleber Cavalcante Gomes, de 35 anos, ficou conhecido na cena rap nacional, onde milita desde os 12, quando escreveu suas primeiras rimas sem saber que "aquilo" consistia num estilo musical. "Eu canto rap por opção, não por falta de recurso estético. Um MC canta rap porque é importante pra ele cantar daquela forma, daquele jeito, naquela batida, isso tem uma força", ressalta.
 
Para o registro do seu segundo álbum de estúdio, "Nó Na Orelha", Criolo deixou o "doido" de lado e, junto aos produtores Marcelo Cabral e Daniel Ganjaman, partiu em direções variadas, explorando composições e ritmos que até então somente familiares e amigos mais próximos sabiam que também habitavam o imaginário do rapper. Do blues ao brega, passando pelo samba, reggae, soul, bolero e, claro, rap, Criolo mostra pela primeira vez o conteúdo integral do disco em duas apresentações no teatro do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, nesta quarta (1º) e quinta-feira (2).
 
Segundo a assessoria do Sesc, os 608 ingressos disponíveis para a primeira data marcada, no dia 2, esgotaram em cerca de três horas após o início das vendas. Assim, a produção adicionou mais um show no calendário, no dia anterior, com procura igualmente concorrida. "A gente sabia que teria procura por conta do público acumulado do Criolo nesses 20 anos de carreira, tanto de quando ele fazia só rap quanto dessa nova fase do trabalho dele, que conquistou um público novo. Mas não esperávamos esgotar tão rapidamente", conta Daniel Ganjaman.

As artes sempre existiram na periferia, mas só estão enxergando agora. O pessoal está atrasado. O preconceito deixou as pessoas cegas

Criolo

A escolha de um teatro para abrigar o lançamento foi unanimidade entre os envolvidos no projeto, já que a ideia é "fazer um show pra espectadores, e não uma balada", conta Ganjaman. No entanto, pondera, "tenho certeza que também terá aquele momento em que as pessoas vão levantar, cantar, dançar, gritar. É um show do Criolo".
 
O espetáculo de Criolo tem outros 15 músicos no palco, entre eles o DJ Dan Dan, com quem há cerca de cinco anos criou a "Rinha dos MCs" --mensalmente, rappers de todo o país se enfrentam em batalhas de improvisação, conhecidas como freestyle. Além da guitarra, baixo e bateria, Criolo também será acompanhado por dois saxofones (tenor e barítono), duas flautas, teclado, trompete, viola e violino, afinados e arranjados especialmente para o evento em oito sessões de ensaios.
 
"Grajaúex"
Morador do mesmo endereço no Grajaú, na zona sul de São Paulo, desde os seis anos de idade, Criolo cresceu cantando com a mãe, "lavando e secando a louça", enquanto o pai ajeitava na vitrola os álbuns de Martinho da Vila, Clara Nunes, Elis Regina, discos de samba de breque e samba rock. Compositor e frequentador assíduo do Pagode da 27 --roda de samba da comunidade que acontece todos os domingos--, ele ainda se espanta quando as pessoas se surpreendem ao vê-lo cantar samba. "Rapaz, eu sou brasileiro, por que é estranho? Pra mim isso é natural. O samba está na vida do brasileiro, por mais que ele não goste", desabafa.

Criolo visita o Pagode da 27 no Grajaú

Retratado nas letras de suas canções, como em "Grajaúex", o Grajaú é o distrito mais populoso da cidade de São Paulo, com cerca de 500 mil habitantes. Criolo se enche de orgulho para falar da comunidade, uma região com problemas em relação à saúde, saneamento básico, educação e lazer. "Cresci vendo as pessoas acordando cedo para ir trabalhar e voltando tarde, sem ver seus filhos acordados. Não estou exercendo a teoria do coitado, porque aqui ninguém é coitado, não. Levanta a cabeça, tem orgulho da sua família, do seu barraco, dos seus filhos e luta pra ter dias melhores, entendeu?".
 
Apesar das dificuldades daquela população, Criolo reverencia a quantidade e a qualidade dos artistas e pensadores que o rodeiam, como os músicos do Pagode da 27, os integrantes do Xemalami --grupo que une os elementos do hip-hop ao xadrez– e os professores que comandam as discussões do Café Filosófico, inclusive sua mãe Maria Vilani, filósofa e uma das idealizadoras do projeto. "Estou rodeado de bons exemplos", ele diz.
 
Segundo Criolo, a arte na periferia das grandes cidades brasileiras está ganhando força e visibilidade devido à "necessidade [das pessoas] de viver coisas boas e fazer parte de coisas boas. Necessidade de contribuir com a nossa comunidade e com o mundo". E ele é enfático ao lembrar que "as artes sempre existiram na periferia, mas só estão enxergando agora. O pessoal está atrasado. O preconceito deixou as pessoas cegas".
 

Os jovens das periferias são mais maduros, a provação da vida chega mais cedo pra gente, então você não tem tempo de ficar com gracinha

Criolo
Em uma de suas canções mais conhecidas, o rap "Sucrilhos", Criolo vocifera que "Di Cavalcanti, Oiticica e Frida Kahlo têm o mesmo valor que a benzedeira do bairro", e explica que usou esse exemplo para que os universos se aproximem. "Por que a benzedeira é menos que o Oiticica? Por que o Oiticica é mais do que não sei quem ou que um jogador de futebol, se somos todos iguais? Lógico que Deus deu um dom pra cada um, e cada um desenvolveu sua história, mas e aí? Se cortar sai sangue, e se ficar sem comer, sente fome".
 
O músico é enfático ao engrandecer a maioria menosprezada e oprimida dos brasileiros. "Não estou diminuindo as conquistas dos grandes mestres da literatura e das artes mundiais, estou exaltando meu povo, o que muitas vezes não acontece vindo da via contrária, e isso me aborrece", conclui.
 
Segundo de cinco filhos entre Dona Maria e Seu Cleon, casados há 38 anos, Criolo foi colega de classe da mãe durante os três anos em que cursaram o ensino médio. "Foi maravilhoso! Na época eu tinha 14 anos e pude enxergar minha mãe como ser humano, fora do papel de mãe, mas a pessoa linda que ela é", lembra. Na sala de aula, não enfrentou nenhum tipo de bullying, porque "os jovens das periferias são mais maduros, a provação da vida chega mais cedo pra gente, então você não tem tempo de ficar com gracinha".
 
Dona Maria guarda memórias semelhantes e diz que o rapper "sempre foi um menino tranquilo e estudioso" e, embora raramente estudassem juntos para as provas, ela costumava ajudá-lo nas matérias de humanas;  nas exatas era ele quem guiava a mãe, mas "em química a gente quebrava a cabeça juntos", ela conta.
 
Profissão: MC e ator
Embora tenha cursado a faculdade de Artes, Criolo não se formou porque não tinha condições de pagar o curso. "Muitos do bairro se formaram mesmo passando as dificuldades que eu passei. Eles foram muito mais fortes e criativos que eu". Mas, segundo Ganjaman, não faz falta um diploma universitário para que Criolo se consagre um artista. "Ele nasceu para trabalhar com arte. Acredito que ele vai ser um grande ator também, se ele se dedicar a isso", diz, citando o trabalho realizado pelo rapper como protagonista de "Profissão: MC", um filme de Alessandro Buzo e Toni Nogueira premiado no festival de Gramado em 2010.
 
Rodado sem a captação de um único real e com apenas uma câmera responsável por todos os takes, o longa-metragem "conta a história de um MC, a luta que é para você se manter de pé com tanta coisa dizendo que não é para você seguir seu sonho", resume Criolo, que se diz honrado pelo convite para participar do projeto filmado no Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo.
 
MC há mais de 20 anos, para Criolo foi inevitável a identificação com o personagem. Seu primeiro disco gravado em estúdio, "Ainda Há Tempo" --exclusivamente dedicado ao rap-- traz algumas das canções mais reverenciadas na cena, entre elas "É o Teste", a favorita de Dona Maria, cuja letra diz "e a minha mãe que cuida de mim independente da minha idade".
 

"Nó Na Orelha"
Em 2008, no auge de sua carreira como rapper, Criolo decidiu parar. "Eu estava fazendo uma avaliação do meu texto, pensando 'até que ponto estou contribuindo pra cena?' Foi um lance de auto-avaliação mesmo, porque tem tanta gente talentosa que luta tanto por espaço". Diante da dúvida, se continuava ou não a ser o foco dos holofotes na cena do rap, um produtor cultural e amigo de Criolo, da galeria Matilha Cultural, ofereceu a ele as condições necessárias para que pudesse gravar os sambas e as canções que vinha compondo há mais de dez anos.
 
Os produtores Marcelo Cabral e Daniel Ganjaman foram convidados para desfazer o nó nas milhares de ideias de Criolo, que estava decidido a gravar um disco de samba e apresentou em estúdio muito mais do que as dez faixas que foram registradas. Ao passo que o músico cantarolava as composições, os produtores se deram conta que outros ritmos também estavam presentes e o disco não poderia se limitar a um único gênero.
 
"A gente [Ganjaman e Marcelo Cabral] fez o papel de produtor e arranjador do disco, principalmente pelo fato dele não tocar nenhum instrumento e não ser um músico da forma mais acadêmica, mas ele já estava com tudo isso [os arranjos] muito bem resolvido na cabeça", conta Ganjaman, frisando que "Nó Na Orelha" é um disco completamente autoral de Criolo, exceto por uma única parceria com o Kiko Dinucci, que surgiu no processo de produção.
 
Após oito meses em estúdio, o disco foi lançado e distribuído gratuitamente na internet. Em menos de três dias na rede, o segundo álbum do artista do Grajaú já contabilizava 25 mil downloads. Segundo Ganjaman, "não foi por acaso, pois a música popular brasileira da nova geração estava vivendo um momento de criatividade forçada". Para ele, Criolo veio preencher essa lacuna artística de que carecia a cena. "O Criolo é um dos artistas mais incríveis com que trabalhei na última década", elogia o produtor.
 
"Acho que o respeito que eu, o Daniel e o Marcelo temos pela música é muito grande, e o respeito que a gente tem pelas pessoas que fizeram a história disso no país, sobretudo os grandes heróis anônimos, foi uma coisa muito forte pra gente se respeitar e enxergar o valor um no outro", conta Criolo sobre a aproximação entre músico e produtores que culminou em um dos discos nacionais mais comentados do ano.
 

CRIOLO EM SÃO PAULO
 
Quando: nesta quarta (1º) e quinta-feira (2), a partir das 21h
Onde: Sesc Vila Mariana (Rua Pelotas, 141, Vila Mariana)
Quanto: dia 1º - R$ 24 (inteira), R$ 12 (usuário matriculado no Sesc e dependentes, maiores de 60 anos, professores da rede pública e estudantes), R$ 6 (trabalhador no comércio e serviços matriculado no Sesc e dependentes); dia 2 - esgotados
Ingressos: nas unidades do Sesc, em São Paulo e interior
Censura: 12 anos