Topo

João Gilberto 80 anos: Chico, Gal, Caetano, Gil e Roberto Carlos falam sobre a primeira vez que ouviram o músico

João Gilberto se apresenta no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (24/08/2008) - Rafael Andrade/Folha Imagem
João Gilberto se apresenta no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (24/08/2008) Imagem: Rafael Andrade/Folha Imagem

RONALDO EVANGELISTA

Colaboração para o UOL

07/06/2011 06h00

Foi uma daquelas revoluções por que ninguém pode esperar: questão de contexto certo na hora certa no lugar certo. Quando João Gilberto lançou o 78 rotações de "Chega de Saudade" em agosto de 1958 e, poucos meses depois, em abril de 1959, o LP de mesmo nome, foi como uma bomba atômica de influência.

Com arranjos e pianos de Tom Jobim, também autor da faixa-título (com letra de Vinicius de Moraes), a canção e o disco foram seminais para a Bossa Nova como movimento, mas também muito mais: "Em pouquíssimo tempo, influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores", escrevia Tom sobre João na contracapa.

O que ele não podia ter previsto era que aquele som pegaria também toda a geração seguinte de calças curtas, jovens compositores e cantores que anos depois criariam suas próprias revoluções, como a Tropicália e a Jovem Guarda. O impacto foi tão grande que todo mundo se lembra quando ouviu João Gilberto pela primeira vez e como aquilo influenciou sua música e seu modo de pensar.

João Gilberto completa 80 anos no próximo dia 10 de junho e abaixo você acompanha as lembranças da primeira audição de João Gilberto pelos jovens Roberto Carlos, Gal Costa, Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso.

 

CHICO BUARQUE

Quando apareceu Chega de Saudade, foi um choque tremendo, me lembro perfeitamente. Ficava horas, a tarde inteira ouvindo aquilo, ouvindo, ouvindo, ouvindo... Conhecia o violão de João Gilberto desde o disco da Elizeth Cardoso, Canção do amor demais, um disco que freqüentou muito a Telefunken dos meus pais. João tocou violão em duas faixas, “Outra vez” e “Chega de saudade”. Mas a gravação de João Gilberto era diferente. Eu nem sabia que “Chega de saudade” era do Tom Jobim, tanto que, ao pedir dinheiro aos meus pais para comprar o disco, disse que a música era do Vinicius de Moraes, o autor da letra e amigo do meu pai. Ouvia Chega de Saudade sem parar. Eu e um amigo meu de rua ficávamos ali, com violão, tentando decifrar a batida e as harmonias de João. Quando saiu o primeiro long-play do João Gilberto, a gente repetia “Aos pés da cruz” não sei quantas vezes na tentativa de fazer aquela introdução. Por morar em São Paulo, eu levava uma desvantagem em relação ao pessoal do Rio. Não havia televisão na minha casa. De vez em quando, chegava um amigo, dizendo: "Vi aquele cara esquisito que você gosta na televisão." João Gilberto apareceu como uma coisa misteriosa. Ele era diferente de tudo até para um jovem de 18 anos. Eu tinha 14 anos e, na época, ter quatro anos a menos significava uma diferença brutal.

*Chico em entrevista a Almir Chediak, 1999

GILBERTO GIL

Em 1959 eu estava na Bahia e um dia ouvindo rádio, ouvi um disco do João Gilberto: fiquei assustado quando ouvi aquilo, parece que era "Morena Boca-de-Ouro", ouvi aquilo cantado de uma maneira estranha, com um acompanhamento estranho e fiquei realmente chocado. Me lembro que era um dia em que eu voltava da aula, eram duas horas da tarde, tinha acabado de almoçar e tinha ligado a Rádio Bahia. Não sabia de nada que estava acontecendo no Rio e de repente ouvi aquela coisa. Fiquei sabendo que era o João Gilberto porque telefonei para a rádio perguntando o que era aquilo, quem estava cantando aquele troço, disseram que era o João, eu fui à loja de discos procurar, ainda não tinha chegado, mas quando chegou eu comprei, foi aquela paixão absoluta, momentânea e total pela coisa, foi uma paixão que me tomou durante todos aqueles anos subsequentes.

*Gilberto Gil em depoimento a Zuza Homem de Mello, 1968

CAETANO VELOSO

Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. Ainda morava em Santo Amaro, e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade que lhe parecera estranha e que, por isso mesmo, ele julgara que me interessaria: "Caetano, você que gosta de coisas loucas, você precisa ouvir o disco desse sujeito que canta totalmente desafinado, a orquestra vai pra um lado e ele vai pro outro". Ele exagerava a estranheza que a audição de João lhe causava, possivelmente encorajado pelo título da canção "Desafinado" - uma pista falsa para primeiros ouvintes de uma composição que, com seus intervalos melódicos inusitados, exigia intérpretes afinadíssimos e terminava, na delicada ironia de suas palavras, pedindo tolerância para aqueles que não o eram. A bossa nova nos arrebatou. Em Santo Amaro nós cultuávamos João Gilberto em frente a um boteco modesto que chamávamos "bar de Bubu", por causa do nome do preto gordo que era seu dono. Ele comprar o primeiro LP de João, Chega de Saudade - o disco inaugutal do movimento -, e tocava-o repetidas vezes. Primeiro, por ele próprio gostava , e, depois, porque saia que nós íamos ali para ouvi-lo.

*Caetano Veloso em "Verdade Tropical", 1997

GAL COSTA

Eu era uma menina e ouvia tudo que se tocava nas rádios. Eu ouvia Angela Maria, Dalva de Oliveira, ouvia Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro. Eu gostava das coisas legais, via todo mundo - Sarah, Ella, Betty Carter, Chet Baker, Frank Sinatra, Ray Charles, Louis Armstrong. Mas o dia em que ouvi João Gilberto cantando “Chega de saudade” foi um impacto profundo e uma atração imediata. Era uma coisa totalmente estranha e nova naquela época, mas eu abracei aquilo com paixão. Mudou a minha vida, ali eu reaprendi a cantar. Sou autodidata, sempre soube tudo de canto sem nunca ter ido escola. Respiração, diafragma, técnica vocal, divisão rítmica da poesia, da palavra cantada, respiração. Ouvia João muito atentamente, com muita paixão. E comecei a estudar emissão vocal em casa. No banheiro, com panela, com meu eco, reverberação, comecei a estudar, prestava atenção a tudo. João Gilberto é minha grande referência.

*Gal Costa em entrevista a Ronaldo Evangelista, 2010

ROBERTO CARLOS

Numa tarde de sábado Roberto Carlos chegou cansado e desanimado à sua casa no subúrbio de Lins de Vasconcelos. E de repente, uma voz e um violão irromperam no rádio: "Vai minha tristeza e diz a ela / que sem ela não pode ser / diz-lhe numa prece que ela regresse / porque eu não posso mais sofrer / chega de saudade..." E então tudo lhe pareceu novo outra vez. Era João Gilberto e a bossa nova chegando para iluminar os caminhos de Roberto Carlos - e de toda uma geração de cantores, compositores, arranjadores, músicos. Para Roberto, aquilo foi literalmente uma revelação. A sala de sua casa foi iluminada pela voz e o violão de João Gilberto antando a recém-gravada “Chega de Saudade”, de Tom e Vinicius. O fraseado sincopado do cantor e os incríveis jogos rítmicos entre voz e violão deixaram o garoto encantado. "Nunca tinha ouvido nada parecido antes. A forma de ele cantar, a colocação da voz, a emissão, a afinação, a divisão, tudo ali era perfeito. Quando ouvi João Gilberto, eu fiquei parado, porque aquilo era algo simplesmente maravilhoso."

*Paulo Cesar de Araújo em Roberto Carlos em Detalhes, 2006