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Ratos de Porão passa a limpo a história da música não popular barulhenta brasileira

JEAN CANUTO

Colaboração para o UOL

12/11/2011 11h58

Em uma iniciativa inédita e histórica, o Ratos de Porão passou a limpo, em ordem cronológica e com quase todos os responsáveis presentes, a sua longeva história, que já contabiliza 30 anos de serviços prestados à música não popular barulhenta brasileira.


Formado em 1981 na Vila Piauí, o grupo é um dos mais importantes nomes da cena hardcore punk e crossover mundial.O plano era reunir na data cabalística desta sexta, 11/11/11, todos os 11 integrantes que passaram pela banda. Só não deu totalmente certo porque o baixista Rafael “Pica-Pau”, que esteve na banda entre 1995 e 1999, faltou ao encontro na casa de shows underground paulistana Hangar 110. Mas, conseguir juntar dez deles, quatro titulares e seis reservas, para celebrar a efeméride, foi um golaço digno de placa, ou DVD, quem sabe.

Todos ali, cada qual à sua maneira, fincaram tijolos na estrada cheia de curvas perigosas que sempre marcou a trajetória da banda. Para ver e ouvir registros ricos em detalhes, recomenda-se uma espiada no já antológico documentário “Guidable - A Verdadeira História do Ratos de Porão” (Blackvomit Filmes), que teve cenas exibidas durante a noite nos telões do Hangar.
 

O que ecoou dos amplificadores foi o caos em forma de som. A pista virou um mar de braços e pernas para tudo quanto é lado e salve-se quem puder. Não houve nenhum incidente.

Coube ao grupo grind paulistano D.E.R. e à banda de thrashcore americana Conquest For Death a tarefa de calibrar os tímpanos do público, que misturava músicos de diversas bandas de SP (Ação Direta, Lobotomia, Atroz, Agrotóxico, Olho Seco, Claustrofobia, Nitrominds, etc), fãs que cresceram ouvindo Ratos e uma nova geração de interessados em abalar seus sistemas auditivos.

Caos em forma de som
Com a casa cheia, às 22h05, ouve-se Jão dizer que era hora de parar de enrolar e abrir as cortinas porque muita gente ainda iria pegar o metrô para ir embora. Ordem atendida.

Estamos de volta à 1981: no palco, Jão (voz e guitarra), Jabá (baixo) e Betinho (bateria).

Bem entrosado (os três haviam voltado a tocar juntos há algum tempo na banda Periferia S.A.,onde Betinho decidiu largar as baquetas de vez) o trio abre o concerto com “Por quê?”, a primeira música feita pela banda, sucedida por sons dos primeiros dias.
Mingau logo é convidado para assumir a guitarra e seguem pauladas registradas na coletânea em vinil "SUB", dividido com as bandas Cólera, Fogo Cruzado e Psykóze.

O que ecoou dos amplificadores do Hangar 110 foi o caos em forma de som. O público imediatamente reagiu a contento. A pista vira um mar de braços e pernas para tudo quanto é lado e salve-se quem puder. Não houve nenhum incidente.

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Betinho sai de cena e é substituído por Jão, que assume a bateria. Com Mingau na guitarra e Gordo, que é convidado para assumir o vocal, mais Jabá comandando o baixo, num minuto estamos diante da formação que gravou o clássico “Crucificados pelo Sistema”, primeiro disco de hardcore punk gravado por uma banda na América Latina.

Mingau, que atualmente toca no Ultraje a Rigor, sai ovacionado após a performance, que tem como destaque um cover do Olho Seco, banda que teve muita influência sobre o Ratos e considerada também umas das principais em inaugurar o gênero hardcore no Brasil. Redson, vocalista do Cólera, morto em 28/9, também é homenageado. Aos pés da bateria, Pietro, filho do Gordo, assiste a tudo com visão privilegiada.

Mais sujos e agressivos
Hora de uma guinada radical em todos os sentidos. Spaguetti assume a bateria e Jão volta para a guitarra. Jabá permanece no baixo. Gordo seguirá até o final no posto. Uma formação que não toca junta há 20 anos, segundo Gordo.

Estamos no campo de “Descanse em Paz“ (quando a banda começa a fusão com metal e a confusão com os fãs), “Cada Dia Mais Sujo e Agressivo”, “Brasil” (outro clássico absoluto da banda) e “Anarkophobia”. O intensivão metal/crossover correu solto e foi muito bem recebido.

Este show histórico deve ser encarado não apenas pelo prazer de se ver uma banda íntegra reunir suas diversas formações, atingindo uma marca de longevidade digna de livro dos recordes, mas também por ser fundamental para entender as mutações que a música pesada sofreu desde o início dos anos 80.


Saem de cena Spaguetti e Jabá. Entram Boka, na bateria, e Walter Bart assume o baixo, para protagonizarem o momento mais divertido da noite, a execução do cover de “Breaking All The Rules”, de Peter Frampton. A música está registrada no disco “Just Another Crime in Massacreland”, o único de que o baixista participou.

Em seguida seria a vez de Rafael “Pica-Pau” assumir o baixo para cobrir a fase dos discos “Feijoada Acidente?” (Nacional e Internacional) e “Carniceria Tropical” (talvez o disco mais bem feito do Ratos até aqui). Jão, visivelmente irritado, presta as contas da ausência, mas os comentários tecidos são impublicáveis. Walter deixa o palco e Fralda, portanto, tem sua entrada antecipada para dar conta do recado. Gordo contemporiza e dedica a música "Atitude Zero" (de “Carniceria Tropical”) à Pica-Pau. Seguem-se execuções de músicas dos discos “Guerra Civil Canibal”, “Sistemados Pelo Crucifa” (regravação mais pesada do “Crucificados Pelo Sistema”) e “Onisciente Coletivo”.

A última mudança acontece com Fralda dando lugar a Juninho, para fechar a história até aqui com o trabalho mais recente da banda, “Homem Inimigo do Homem”.

O show se encerra por volta da meia-noite após execução de “Crise Geral”, música que normalmente fecha as apresentações da banda, e “Periferia”, que junta todos os integrantes no palco.

A massa presente sai cansada e ainda sob forte impacto do que havia acabado de presenciar. A verdadeira história do Ratos de Porão acabara de ser contada ao vivo, no palco do Hangar 110.  

Este show histórico deve ser encarado não apenas pelo prazer de se ver uma banda íntegra reunir suas diversas formações em uma festividade rara, atingindo uma marca de longevidade digna de livro dos recordes para os padrões do underground, sobretudo no Brasil, mas também fundamental para entender as múltiplas mutações que a música pesada sofreu desde o início dos anos 80. E deixou claro o quanto o Ratos de Porão sempre foi uma banda à frente de seu tempo. E segue sendo. Cada dia mais suja e agressiva.