Caetano Veloso introduz Gal Costa na eletrônica e na estética agressiva em "Recanto"; saiba como é o novo disco da cantora
O novo disco de Gal Costa. Ou o novo disco de Caetano Veloso. O rosto estampado na capa, o nome e a voz são dela. As composições, a produção, as ideias e a concepção são todas dele. "Recanto", que chega às lojas no dia 6 de dezembro, é o resultado de mais uma parceria inusitada: não pela colaboração em si, que já data de décadas, mas pela aposta em inserir batidas eletrônicas e experimentações sonoras na discografia de uma das vozes mais emblemáticas da música popular brasileira.
O histórico de Gal e de Caetano encontram amparo na coragem e na vontade de inovar constantemente, como fez em "Gal" (1969) ou no show "O Sorriso do Gato de Alice" (1994), e "Recanto", para ela, é mais uma guinada em sua carreira. "É um disco ousado, arrojado, que tem a ver com tudo o que ele [Caetano] é e eu também, tem a ver com a nossa vida", resume Gal. Mas, ela diz, o experimentalismo da vez não deveria assustar os mais conservadores. "Se meu público está preparado para receber este trabalho? Acho que está. Tem que estar, né?", ela diz incisiva durante conversa nesta quarta-feira (30) com um grupo de jornalistas em um hotel de São Paulo.
Capa do disco "Recanto", de Gal Costa (2011)
A cabeça pensante por trás de todo o trabalho, no entanto, preferiu aparecer apenas nos créditos. "Está lá no encarte: 'todas as canções compostas por Caetano Veloso'", ele lembra. "Não era o caso de 'Domingo' (1967), que eu dividia os vocais com ela. Então isso basta, porque é um disco da cantora. A cara e a voz são dela", resume Caetano, citando como referência "IRM" (2009), disco que o cantor Beck compôs e produziu para a francesa Charlotte Gainsbourg.
"Recanto" foi composto quase inteiramente para caber à voz de Gal Costa. Em um processo longo e vagaroso, que começou no ano passado, Caetano criou nove das 11 faixas do disco especialmente para este registro --"Madre Deus" e "Mansidão" já ganharam outras vozes anteriormente. O álbum foi desenvolvido quase todo via fibra ótica: pela internet, Gal recebia em Salvador as bases que o produtor Kassin a enviava do Rio de Janeiro para cantar. "As primeiras bases eram muito cruas, sem nenhum elemento. Era sempre o clique para marcar o andamento, mas nada confortáveis", lembra Gal, que ainda não conhece Kassin pessoalmente, e que também trabalhou com o afilhado Moreno Veloso e outros músicos convidados.
Apesar de elementos eletrônicos, "Recanto" não tem efeito dançante. As batidas são lentas, algumas delas aproximando-se do trip-hop. O álbum carrega uma carga de agressividade, estética e temática, que são contrastadas pela tonalidade doce que Gal adiciona às faixas. "Eu queria que as canções não fossem recatadas, não evitassem ideias dificeis nem palavras pesadas ou sons desagradáveis. Porque eu sabia que o 'cool' da voz da Gal poderia conviver com segurança e autoridade em meio a tudo isso", conta Caetano.
Eu queria que as canções não fossem recatadas, não evitassem ideias dificeis nem palavras pesadas ou sons desagradáveis. Porque eu sabia que o 'cool' da voz da Gal poderia conviver com segurança e autoridade em meio a tudo isso
Caetano VelosoA faixa de abertura, "Recanto Escuro", é uma espécie de biografia cifrada de Gal. Entre batidas secas de programação --que parecem, de propósito, estouradas na caixa de som-- ela desliza a voz por uma letra tristonha: "cool jazz me faz feliz e só, não tenho jeito, o álcool só me faz chorar". A abstrata "Cara do Mundo", na sequência, traz uma melodia torta de blues, que segue a linha de programação eletrônica, sem guitarras ou baixo, apenas com uma bateria marcando o tempo e a voz de Gal em primeiro plano.
A balada anticonvencional "Autotune Autoerótica", como sugere o título, faz uso de uma ferramenta tecnológica muito presente na música pop atual: o autotune, que modifica e distorce a voz do cantor. Aqui, Gal abusa de agudos: "Americana global, minha voz na panela lá, uma lembrança secreta de plena certeza".
A quarta música do disco, a sombria "Tudo Dói", aborda a vida como barra pesada. "Viver é um desastre que sucede a alguns, nada temos sobre os não nenhuns", ela canta. É a faixa preferida de Gal e de Caetano no disco. "Ela sintetiza de uma forma totalmente diferente o disco e a bossa nova. Ela tem a estranheza, a irreverência, a beleza, a sonoridade... não sei explicar, tudo nela tem um componente 'joãogilbertiano', que para mim é uma coisa maravilhosa", disse Gal na entrevista.
O primeiro single do álbum, "Neguinho", é como um remix com melodia falada. "O Menino", sexta canção do disco, trabalha com banda. Aqui Gal canta acompanhada de bateria, guitarra e baixo, com poucas interferências eletrônicas.
"Madre Deus" e "Mansidão", as duas músicas seguintes, foram feitas por Caetano em outras ocasiões. Aqui, a primeira ganhou roupagem etérea com a voz de Gal sob barulhinhos e poucos elementos sonoros. A segunda, um contraste com "Tudo Dói", ainda traz resquícios dos barulhinhos anteriores, mas agora ao som do piano de Daniel Jobim e do cello de Jaques Morelenbaum.
"Sexo e Dinheiro" brinca com jogo de palavras. Um dos destaques do disco é "Miami Maculelê", uma referência ao funk carioca com a voz de Gal imbuída no autotune, sons de video-game e versos de Caetano em forma de rap. "Segunda" fecha o álbum, uma canção em tom rural acompanhada de cordas, e a única sem qualquer elemento eletrônico.
Gal se diz orgulhosa do resultado. "Caetano tem capacidade de fazer coisas tão redondas para mim, para o meu canto, que é um prazer indescritível. Caetano gosta muito do ser 'cool'. Porque eu sou cool, né? E ele gosta muito disso", ela diz, séria. E com seu rosto estampado na capa do disco, Gal é incisiva: "Este disco é a minha cara".
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