Filas atrasam show de Roger Waters em Porto Alegre
Um único imprevisto escapou ao controle da impecável produção do espetáculo “The Wall”, do músico inglês Roger Waters, que abriu sua temporada brasileira na noite deste domingo (25) no estádio Beira-Rio, em Porto Alegre. As filas que serpenteavam o estádio desde as primeiras horas da tarde atrasaram o início do show em 42 minutos. Mas este foi o único detalhe que manchou a apresentação de Waters na sua primeira noite no Brasil. Em quase duas horas de show, dedicado ao brasileiro Jean Charles de Menezes, morto em 2005 pela polícia londrina ao ser confundido com um terrorista, o ex-integrante do Pink Floyd foi uma espécie de coadjuvante de luxo de um espetáculo em que a grande atração é o muro e suas projeções de alta definição, como se a plateia assistisse a uma sessão de cinema executada ao vivo.
Às 20h30, após meia hora de atraso, um locutor anunciou à plateia que a produção havia decidido aguardar a entrada de todo público que ainda estava do lado de fora do Beira-Rio. Havia ingressos à venda ao longo do domingo, mas, segundo a produção, todas as 48 mil entradas foram vendidas até o início da apresentação. O público que lotou o estádio enxergou Waters no palco às 20h42 ao riff de “In the Flesh?”, canção que abre o disco homônimo e o repertório da turnê. Em dois atos de aproximadamente uma hora cada, separados por um intervalo de cerca de 20 minutos, Waters segue o mesmo roteiro sem qualquer margem para surpresas - fãs de Pink Floyd que sonham em ouvir hits dos outros discos da banda podem abandonar qualquer esperança.
O muro não é construído com espontaneidade e improviso. O alicerce de “The Wall” está fincado numa força oposta: a produção meticulosa, capaz de impressionar o mais crítico dos espectadores ou pessoas que jamais ouviram “The Wall” e sequer conhecem a mensagem de espetáculo. É seguro dizer que o público brasileiro jamais viu show de rock parecido, mesmo após o país ter assistido recentemente a grandes produções como as de Paul McCartney e U2. Enquanto essas turnês dão destaque aos artistas e suas músicas, “The Wall” foca no desenvolvimento do roteiro do álbum de 1979 através de mensagens visuais. Como num musical da Broadway, a música, é claro, está lá e ajuda a apresentar o tema - as frustrações e o medo que levantam paredes metafóricas entre um personagem autobiográfico de Waters e a sociedade e que provocam isolamento e intolerância. Até Waters fica em segundo plano diante da grandiosidade das projeções lançadas sobre o cenário em formato de muro de 137 metros de largura por 11 de altura.
Ou seja, embora contenham as mesmas músicas, o disco “The Wall” e o espetáculo “The Wall” são experiências totalmente distintas. Até quem não é ligado ao rock progressivo do Pink Floyd pode ter um momento de deleite visual diante da nova produção. Logo na primeira música, fogos de artifício são disparados do palco e a réplica de um avião da Segunda Guerra Mundial explode contra o muro. A pirotecnia introduz o primeiro dos traumas abordados em “The Wall”: a morte do pai na guerra. O som “quadrifônico” produzido pelas caixas de som laterais ajuda a compor o clima com sons de tiros, aviões e helicópteros. Na segunda canção, “The Thin Ice”, os 36 projetores de alta definição exibem rostos de pessoas mortas em guerras recentes nos 424 blocos que compõem o paredão. A música mais conhecida do espetáculo, “Another Brick in the Wall”, partes 1 e 2, vem na sequência com o apoio de 15 crianças da ONG Canta Brasil que vestiam uma camiseta onde se lia “Fear Builds Walls” (o medo ergue paredes). Um boneco inflável do professor cruel de Waters e as projeções visuais são o argumento definitivo para convencer a plateia de que ela está diante de um show de rock diferente. O muro se transforma numa enorme tela de cinema em alta definição abastecida com elementos gráficos inspirados no graffiti, com animações do filme “The Wall” e com imagens impressionantes do próprio Waters mescladas à colagem visual.
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Embora tenha sido composto originalmente como um mergulho introspectivo nas próprias frustrações, Waters ampliou a mensagem do novo “The Wall” na tentativa de mostrar que a intolerância, a guerra e o isolamento individual surgem dos mais variados muros erguidos sobre medo, traumas e frustrações. “Quero dedicar este concerto a Jean Charles de Menezes”, disse Roger Waters, em português, após saudar o público e agradecer às crianças que participaram do espetáculo. “E a todas as outras vítimas de terrorismo de Estado em todo o mundo. Vamos lembrar de vocês”, continuou o músico, ainda em português. Os pais de Jean Charles, Matozinhos Silva e Maria Menezes, assistiram ao show no Beira-Rio segundo a produção.
“The Wall não é sobre mim. É sobre Jean Charles e todos nós”, explicou Waters, agora já apelando para o inglês. Em seguida, tocou “Mother”, quando os caprichos da produção ficaram evidentes. Após o verso “Mother, should I trust the government?” (Mãe, devo confiar no governo?), o telão mostrou a resposta: “NEM F...”, em português e em letras garrafais. No primeiro ato, além de falar da morte do pai, do professor cruel e da mãe superprotetora, “The Wall” ainda aborda o casamento falido como mais uma das frustrações que se transformam em tijolos empilhados um a um entre o personagem e a sociedade. Literalmente, os blocos vão sendo levantados por técnicos ao longo da primeira hora de espetáculo. O muro vai se formando em frente ao palco, deixando pequenas frestas para o público observar a banda, e Waters canta a última música da primeira parte, “Goodbye Cruel World”, dentro do último buraco da parede.
Após o intervalo de 20 minutos, “Hey You” é interpretada pela banda inteiramente atrás do muro. Aos poucos, o personagem vai revelando o desconforto do seu isolamento, como em “Nobody Home”, quando Waters canta inserido em um cenário de uma sala com cadeira e TV que se abre dentro do muro. A metade final tem conteúdo mais político, abordando a intolerância de Estado gerada a partir dos muros. O tradicional porco inflável que sobrevoa a plateia traz mensagens políticas em português, como “Por um país melhor” e “Tudo ficará bem, siga apenas consumindo”. Em “Run Like Hell”, o telão provoca perguntando: “Tem muitos paranoicos no estádio hoje?”. O muro só cai de verdade na 27ª canção, “The Trial”, depois da banda tocar na parte da frente e de trás do muro - uma ginástica da produção que a plateia praticamente nem percebe. Às 23h03, Roger Waters agradeceu e saiu de cena sem que o público pedisse bis.
Depois de deixar Porto Alegre, a turnê segue para o Rio de Janeiro, onde se apresenta no Engenhão, na quinta-feira (29). Roger Waters ainda tocará em São Paulo nos dias 1º e 3 abril, no estádio do Morumbi.
Veja o roteiro de “The Wall”
PARTE 1 | PARTE 2 |
"In the Flesh?" | "Hey You" |
"The Thin Ice" | "Is There Anybody Out There?" |
"Another Brick in the Wall (Part 1)" | "Nobody Home" |
"The Happiest Days of Our Lives" | "Vera" |
"Another Brick in the Wall (Part 2)" | "Bring the Boys Back Home" |
"Another Brick in the Wall (Part 2) Reprise" | "Comfortably Numb" |
"Mother" | "The Show Must Go On" |
"Goodbye Blue Sky" | "In the Flesh" |
"Empty Spaces" | "Run Like Hell" |
"What Shall We Do Now?" | "Waiting for the Worms" |
"Young Lust" | "Stop" |
"One of My Turns" | "The Trial" |
"Don't Leave Me Now" | "Outside the Wall" |
"Another Brick in the Wall (Part 3)" | |
"The Last Few Bricks" | |
"Goodbye Cruel World" |
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