Nos 40 anos do clássico de Bowie, líder do Nenhum de Nós explica versão de 'Starman'
O ano era 1972 e a cena musical era extraordinária! Antes de junho chegar, Paul McCartney estreara ao vivo com sua nova banda Wings, o Deep Purple lançara um petardo chamado “Machine Head” e os Rolling Stones, o clássico “Exile on Main Street”. Led Zeppelin, Pink Floyd, Nick Drake estavam em plena atividade, e John Lennon, morando em Nova York, enfrentava o conservadorismo americano. A guerra do Vietnã estava longe de acabar...
Nesse panorama povoado por gênios e artistas inspirados, existia David Bowie, uma figura única nesse cenário. Aprendiz de mímico, ligado às tradições do teatro, andrógino e performático - quando essa palavra ainda era um enigma para grande parte do público -, era considerado "rodado" por já ter feito parte de algumas bandas sem expressão e lançado até 72, quatro discos solo.
Os 'críticos' adoravam dizer que nós havíamos assassinado 'Starman'. Mesmo que Bowie tenha deixado claro que discordava dessa opinião, a banda e a nossa versão penaram, durante anos, com esse estigma
Foi nesse ano que Bowie deu vazão a seu desejo de escrever um musical com inspiração na Broadway, colocando sua inspiração teatral em um projeto discográfico chamado "David Bowie – The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars" – álbum que completa 40 anos nesta semana.
Apoiado em faixas como “Starman”, “Lady Stardust” e “Suffragette City”, Bowie criou um novo tipo de rockstar, que contava a história do rock através dos olhos de seu alter-ego, o alienígena Ziggy, inspirado em metáforas espaciais alimentadas pela então recente chegada do homem à Lua.
O impacto do albúm no mundo do rock, entre os artistas, imprensa e público, foi enorme. Minha história com esse disco - e com uma canção dele em especial – foi ainda mais intensa e rica em acontecimentos.
Nos idos de 1988 minha banda, o Nenhum de Nós, havia lançado apenas um disco de estreia, que contava com um único hit (“Camila, Camila”) e muito pouco repertório para então montar seus primeiros shows. A saída era engrossar o caldo com covers.
Nos debruçamos sobre a letra e optamos por não fazer uma versão literal, mas uma 'viagem' onde contaríamos um capítulo nosso das aventuras do Major Tom
Em uma tarde de ensaio, tocamos várias canções de Bowie para ver qual se encaixaria melhor no repertório. Passamos por “Lady Stardust”, “Ziggy Stardust” (inspirada na versão do Bauhaus), “Ashes to Ashes” e “China Girl” até nos decidirmos por “Starman”. Orgulhosos, tocávamos a canção em sua língua original.
Quando fomos gravar nosso segundo disco, em um intervalo das sessões, para relaxar, decidimos gravar nossa versão de “Starman” - apenas para registrá-la com uma boa qualidade. O produtor do disco, Reinaldo Barriga, entrou no estúdio e, ao ouvir nossa interpretação, lançou um desafio: fazer uma versão em português. Nossa primeira reação foi negativa, mas decidimos topar o desafio inspirados pelo ótimo resultado de uma outra versão, “Joquim”, versão de Vitor Ramil para “Joey” de Bob Dylan.
Nos debruçamos sobre a letra e optamos por não fazer uma versão literal, mas, sim, uma "viagem" onde contaríamos um capítulo nosso das aventuras do Major Tom - personagem criado por Bowie em “Space Oddity” e retratado novamente por ele em 1981, na estupenda “Ashes to Ashes”. Trabalhamos duro para escrever uma honesta e sincera homenagem de fã através daquela versão, cheia de metáforas e imagens consideradas, por nós mesmos, enigmas indecifráveis.
Tivemos que verter a "nossa" letra para o inglês para que fosse enviada à Inglaterra e, então, chegasse às mãos do próprio Bowie para aprovação. O processo foi demorado. Atrasou o nosso disco, inclusive. Mas a devida aprovação acabou chegando a tempo e "O Astronauta de Mármore" (a nossa versão) entrou como a segunda música do lado B de nosso disco chamado “Cardume”.
A gravadora fez uma reunião do marketing para escolher cinco (!!!) possíveis singles dentro do repertório do disco. Desnecessário dizer que "O Astronauta..." não acabou sendo uma dessas cinco.
No show do Morumbi, [Bowie] saudou nossa versão: 'Agora vou tocar uma canção que eu sei que todos podem cantar só que em português!' Foi muito mais que a realização de um sonho de fã. Foi o aval público do próprio Ziggy!
O fato é que a canção acabou sendo um enorme sucesso - foi a música mais tocada no país em 1989. Consequência ou não disso, Bowie veio pela primeira vez ao Brasil nesse ano. Realizou shows no Rio de Janeiro e em São Paulo. No show do Morumbi, saudou nossa versão, dizendo antes de tocar “Starman”: "Agora vou tocar uma canção que eu sei que todos vocês podem cantar só que em português!" Foi muito mais que a realização de um sonho de fã. Foi o aval público do próprio Ziggy!
Na época, os "críticos" adoravam dizer que nós havíamos assassinado “Starman”. Mesmo que Bowie tenha deixado claro que discordava dessa opinião, a banda e a nossa versão penaram, durante anos, com esse estigma: odiada pelos críticos e amada pelo público. Óbvio que quem sustenta uma carrreira de 25 anos é o público e não os críticos – de tão bons, a maioria saiu do "mercado". Nós continuamos. Continuamos fãs de Bowie, de Ziggy e de uma obra que atravessou 40 anos provando que é um verdadeiro clássico e que mudou a história do rock para sempre.
* Thedy Corrêa, 48 anos, é vocalista da banda gaúcha Nenhum de Nós, um dos principais nomes do rock nacional dos anos 80. Entre seus álbuns estão "Nenhum de Nós", de 1987, "Cardume", de 1989, e o recente "Contos de Água e Fogo", de 2011. Como escritor, lançou o livro de poemas "Bruto", em 2006, e "Livro de Astro-Ajuda", de 2010.
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