Contrariando a natureza do rock, os Rolling Stones ousam permanecer vivos
Meu primeiro contato com os Rolling Stones foi colocando o compacto de “Satisfaction” no forno da cozinha da casa onde eu cresci, em Ipanema, no Rio de Janeiro. Eu era da turma dos Beatles, entendam. E uma festinha pré-adolescente lá em casa tinha acabado de ser maliciosamente infiltrada pelo time oposto, graças ao engenho e arte de um grande e querido amigo stonemaníaco (então e até agora). E tal coisa não era absolutamente admissível!
O compacto inimigo tinha que ficar o mais longe possível do sofisticado equipamento stereo montado por meu pai, e só muito relutantemente emprestado (sob vigilância estrita) para os primeiros embalos de sábado à noite da meninada. Terminada a festa, amigos despachados para casa, não resisti: “Satisfaction” saiu do forno. E eu me apaixonei.
Entendam: cresci numa casa extremamente musical, dominada por Ary Barroso, Luiz Gonzaga, Dolores Duran Chopin e bossa nova. A sonoridade do rock – que ouvi pela primeira vez graças a um primo rebelde, fã de Ray Charles – bateu não nos meus ouvidos, mas diretamente no esterno, ali naquele ponto onde as costelas se prendem, ali na frente do coração, dos pulmões. Era uma sensação que nenhuma outra forma de música despertara em mim. E eu estava determinada a seguir esse caminho até o fim.
Eu ainda não conhecia termos como “yin e yang”, mas as ideias atrás dessas palavras definem exatamente o que “Satisfaction”- que ouvi sentada no chão entre as enormes caixas de som, na tarde de domingo depois da festinha- representou para mim, de cara. Os Beatles eram o yin, os Stones, o yang. Água e fogo, os dois elementos essenciais da minha vida.
Talvez por isso tenha ficado tão irritada quando eles lançaram canções como “Ruby Tuesday”, “She’s a Rainbow” ou o álbum “Their Satanic Majesties Request”. Não vale, Stones! Vocês não podem querer ser os Beatles! O equilíbrio do meu universo imaginário está em perigo!
O que eu não sabia então é que todos nós – meu yin, meu yang e todo o universo que criaram e habitavam – teriam um dia que se explicar no mais implacável tribunal que existe: o do tempo. Rock ‘n roll não foi feito para entrar para a história, ou para durar além do absoluto, louco, breve sopro incendiário da juventude. Sua transitoriedade é essencial para sua vitalidade, para sua urgência.
E no entanto…
No entanto os Stones completaram 50 anos de carreira, o que é mais ou menos o tempo que me separa daquela festa em Ipanema. O rock se tornou parte da história, e eu me tornei parte dos contadores dessa história. Muitos naufragaram nesse rio do tempo, que se move sempre em uma única direção; e muitos ainda estão flutuando à deriva, vítimas destra trágica ironia: a geração que não confiava em ninguém com mais de 30 anos e jurava permanecer jovem para sempre envelheceu.
Morrer jovem é fácil. Difícil é continuar vivendo. E por vivendo quero dizer permanecendo totalmente engajado na complexidade, transitoriedade, incoerência da vida. Acho que foi esse feito olímpico que os Stones conseguiram. Tenho sempre a impressão de que a maioria dos grandes feitos é o resultado de erros e não de planos.
Os jovens Stones acreditavam piamente que estavam soando igualzinho seus ídolos, os grandes mestre do blues do Delta, do rhythm ‘n blue elétrico de Chicago, os patriarcas do rock ‘n roll. Não estavam, mas esse é o erro divino: sonhando ser os bluesmen que achavam que estavam imitando os Stones estavam soando como eles mesmos.
O resultado mais glorioso desse erro pode ser sua longevidade _ porque o blues não tem compromisso com o tempo e sim com a natureza humana, e fala de coisas como desejo, morte, frustração, luxúria , perda e amor que são essenciais ao tecido da vida, independente de idade.
Uma grande parte do que define os blues tem a ver com sobrevivência, com "endurance", com a capacidade de permanecer e ir em frente apesar de tudo. É outra tremenda ironia que uma subcultura –a do rock, que tem no blues uma de suas raízes- tenha pensado que podia congelar o tempo num verão de eterna juventude.
Finalmente bluesmen como imaginaram ser 50 anos atrás, os Stones ousam, agora, a maior insolência de todos: permanecer profundamente vivos.
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