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"Pena que queimou tão rápido", diz roteirista de "O Invasor" sobre rapper Sabotage

"Sabotage foi um desses artistas para quem a vida não deu tempo", escreve Marçal de Aquino sobre o rapper, assassinado há dez anos.  - Mauricio Piffer / Folhapress
"Sabotage foi um desses artistas para quem a vida não deu tempo", escreve Marçal de Aquino sobre o rapper, assassinado há dez anos. Imagem: Mauricio Piffer / Folhapress

Marçal Aquino

Especial para o UOL, em São Paulo

24/01/2013 05h00

Lembro da primeira vez em que vi o Sabotage. Foi no começo de 2001, no escritório da Drama Filmes, na véspera das filmagens de "O Invasor". Bons negros tempos: "poca grana, mucha gana". Nossos cabelos e barbas eram fartos e pretos e a vida parecia um fotograma ainda virgem.

No meio do caos fervilhante da produtora, lá estava ele, o rapper que faria uma participação (e que participação!) no terceiro longa de Beto Brant, me esperando para uma conversa sobre as falas do personagem Anísio no filme. Era preciso adequá-las, sobretudo as gírias, para dar verossimilhança ao matador de periferia, e Sabotage colocou à nossa disposição um incrível arsenal de possibilidades, todas cheias de frescor e graça. Direto da fonte, a voz e a picardia dos manos. Foi fundamental para que o titã Paulo Miklos encarnasse com tamanhos som e fúria um dos vilões mais inesperados e aterradores do cinema brasileiro. Fico à vontade para classificar como “antológica” a cena em que Anísio e Sabotage improvisam um rap para a estupefata dupla de engenheiros corruptos, vividos por Marco Ricca e Alexandre Borges. Memorável.

Ao longo do ano seguinte, a trupe do filme tomou de assalto diversos festivais pelo Brasil afora. Em todos, o rapper foi um destaque à parte, conquistando crítica e público com seu carisma hipnótico. Altivo e desdentado. Parecia um daqueles negros, príncipes em seus países, que a gente vê varrendo, indiferentes, o metrô de Paris, de que fala o poema do Houellebecq.

A inteligência artística mais fulgurante com que tive contato em toda a minha vida, Sabotage era movido por uma fome insaciável de informações, que rearticulava quase de imediato nas letras de suas composições. Vê-lo “interpretando” as alterações na política econômica que o então ministro Pedro Malan anunciara à nação minutos antes, em rede nacional de televisão, foi uma experiência hilariante e uma daquelas ocasiões em que você lamenta não estar com uma câmera à mão na hora.

O cordial indignado

Marçal Aquino

Patricia Stavis/Folha Imagem
Nasceu em Amparo, no interior paulista, em 1958. Cursou jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de Campinas e graduou-se em 1983. No ano seguinte, fez sua estreia na literatura com o livro de poemas "A Depilação da Noiva no Dia do Casamento". Mudou-se para São Paulo em 1985, e trabalhou nos jornais "Gazeta Esportiva", "O Estado de S. Paulo" e "Jornal da Tarde", nas funções de revisor, repórter, redator e subeditor. Publicou, entre outros livros, "O Amor e Outros Objetos Pontiagudos", "Faroestes" e "Cabeça a Prêmio". Foi o roteirista dos filmes "Os Matadores", "Ação Entre Amigos", "O Invasor", "Nina" e "Crime Delicado".

Sabotage parecia ter sempre uma música tocando dentro dele.

E havia também uma dureza, resultado do cotidiano áspero que tinha encarado até então. Cordial, porém indignado. Lembro como ele se impôs, na moral, diante de dois grandalhões, obviamente armados, que criavam caso com alguém da nossa trupe, numa boate barra-pesada de Brasília. Sangue no olho, faca no dente. (Para mais detalhes, aguarde "Não Comi Nem Figurante", volume de memórias destes anos de cinema.)

Sabotage foi um desses artistas para quem a vida não deu tempo. Nunca saberemos onde poderia ter chegado uma mente inquieta como a dele, alimentada por uma rara sensibilidade, no momento em que as possibilidades começavam a surgir. Dele, pessoalmente, sempre vou pensar: pena que queimou tão rápido.

Nosso último encontro aconteceu numa estação do metrô na Zona Sul de São Paulo, poucos dias antes de sua morte. Estava feliz e lindo de macacão branco e trancinhas eriçadas na cabeça, a caminho de um estúdio para as sessões finais de gravação de seu segundo CD. Ele me convidou a fazer uma participação especial, talvez lendo algo. Não pude aceitar – tinha marcado, naquela hora, a derradeira conversa com uma mulher a quem tentava dissuadir de mudar-se para Nova York.

Então nos abraçamos, desejamos mútua sorte e ele foi embora com seu andar gingado – tinha mesmo uma música tocando dentro dele! –, misturado às gentes que passavam apressadas, ao encontro de seu destino. 

As pessoas só permanecem no mundo pelas coisas que fizeram. É por tudo que o Sabotage fez que ergo a ele o brinde desta lembrança. A bênção, Sabota.