Experimentalismo, censura e partes íntimas: artistas revelam segredos de 5 capas clássicas da MPB
Em um futuro próximo, jovens ouvintes vão ficar incrédulos: mas, sim, houve um tempo em que lançar um disco era um conceito mais amplo do que apenas listar arquivos digitais comprimidos. Havia um tema, um nome e uma capa. Estampada em um pedaço de papelão de 12 polegadas, a imagem era a síntese de uma obra. "É a vida que produz a arte. E a capa tem que fazer o sujeito entender e se interessar pelo o que vai ver ou ouvir", explica o artista gráfico Elifas Andreato, autor de tantos cartazes de filmes e capas de discos que não cabem na prateleira.
Há 40 anos, o vinil era a principal forma de se ouvir música e, embora a censura da ditadura ainda quisesse calar, histórias de relacionamentos, de intimidade e de experimentos rendiam discos históricos e alegorias para as vitrines das lojas. “Até 1973, as capas eram feitas diante das convicções das gravadoras. Eram eles que escolhiam a arte", conta Elifas. Não à toa, em uma pesquisa sobre as melhores capas de discos brasileiros, feita em 2001 pelo jornal “Folha de S. Paulo”, cinco trabalhos de 1973 apareceram no top 10.
Secos, molhados e decepados
Lembrado até hoje como um dos maiores discos brasileiros (com a melhor capa, segundo a "Folha"), o álbum de estreia do Secos & Molhados foi gravado com um objetivo claro na cabeça: “Ser o 'Sgt. Pepper’s Lonely Heart Club Band'' (disco dos Beatles, de 1967)", conta um dos fundadores da banda, João Ricardo, ao UOL. "Qualquer um que fizesse um disco, almejava uma obra-prima. Agora, nunca pensei que se tornaria o que se tornou. A maneira de como tocou as pessoas continua me surpreendendo até hoje”.
A força musical do disco foi realmente revolucionária. "Secos & Molhados" vendeu rios de cópias e encheu estádios com uma facilidade de um ídolo teen de hoje. Ney Matogrosso, provocativo, já rebolava ao som de “O Vira” e “Mulher Barriguda”, sob os olhos atentos da ditadura. Um fenômeno que, de certa forma, começava pela sua capa anárquica: com as cabeças dos integrantes degoladas, servidas à mesa, como um banquete. "As maquiagens praticamente surgiram dessa foto. Nos shows já fazíamos pinturas leves, mas a definição veio ali”, revela João.
A ideia surgiu do fotógrafo Antonio Carlos Rodrigues, que trabalhava com o músico no jornal “Última Hora”. João revela o truque: “Tivemos que furar um compensado, colocado entre dois cavaletes, para colocarmos as cabeças. Ficávamos sentados em tijolos para mantermos a mesma altura. Antes fui com o Gerson (Conrad) comprar os alimentos no único supermercado aberto à noite. Foi cansativo mesmo".
Olho do c*
No mesmo contexto da ditadura, um olho inusitado se abria na capa de “Todos os Olhos”, de Tom Zé. Com as composições cada vez mais concretistas e inventivas, o baiano de Irará deixou a arte do novo disco na mão da agência de publicidade do poeta Décio Pignatari, que quis levar "a fundo” uma ideia para contextualizar o nome do álbum: “fotografar o olho do c*”, como bem explica o escritor e autor da capa, Reinaldo Moraes.
Para a tarefa, Reinaldo convenceu uma amiga-namorada a servir como "modelo" do polêmico orifício e lançou mão de uma bolinha de gude verde para servir como retina. A capa foi para as lojas sem muito alarde: “A gravadora não lançaria o disco se soubesse disso. Apenas eu e alguns amigos mais próximos sabíamos. Como a capa era muito bonita, ficava na vitrine, as pessoas falavam: vou lá olhar um c* na vitrine”, relembra Tom Zé.
A história, de tão repetida, virou fato. Mas Reinaldo conta que as fotos daquele dia careciam de ambiguidade. "A verdadeira natureza anatômica do dito 'olho' não se deixava disfarçar”, conta. Testou então o mesmo objeto nos lábios carnudos da garota. É essa a verdadeira origem da imagem da capa.
O UOL contou para Tom Zé a história relatada por Reinaldo Moraes. “Não soube disso oficialmente. Estou sabendo agora que você está falando. O Décio nunca me falou nada. Para nós, era civicamente um c*”, disse, aos risos.
Disco para entendidos
A invasão dessas pérolas nas lojas começou em janeiro de 1973 com "Araçá Azul". Recém-chegado ao Brasil, após exílio de dois anos em Londres, Caetano Veloso entrou sozinho em um estúdio sem composições prontas, mas com a alma inquieta para experimentar. Cantou samba em ritmo de rock com “Eu Quero Essa Mulher”, gravou "Épico" no meio de uma avenida movimentada em São Paulo e apenas grunhiu em “De Conversa”.
Na capa, em uma foto acachapante, com um ângulo inusitado, ele aparece refletido em um espelho, com cabeleira rebelde, o olhar escondido, a barriga levemente saliente. Para fechar, escreveu na capa dupla: “Um disco para entendidos”. Ninguém entendeu nada e o álbum bateu recorde de devolução nas lojas. “Eu me orgulhava desse tipo de fracasso”, confidenciou Caetano em seu livro-ensaio “Verdade Tropical”.
“Fica mal eu falar isso, mas acho a foto desprezível”, diz o diretor de cinema e autor da foto, Ivan Cardoso. “Só uma besta fotografaria o Caetano sem mostrar os olhos, com o pé do Luciano Figueiredo (que assina a produção da capa) aparecendo embaixo”.
Na casa dos 20 anos, Ivan aceitou o trabalho da gravadora e viajou com Caetano para a Bahia sem nenhuma ideia na cabeça. “Eu não era um fotógrafo, só saía clicando. Nunca revelei um filme na minha vida. A capa foi uma contribuição de erros. Naquela época era tudo ‘do it yourself’. Pegamos aquele espelho não sei onde”, revela.
Índia de tapa-sexo
“('Índia') foi o começo de uma ruptura radical de todos aqueles discos mais radicais dos anos 60. É um disco que não é eletrônico”, explica Gal Costa. Até então musa da contracultura no Brasil, Gal quis pisar mais na terra. Gravou a versão guarânia de "Índia", hoje lembrado como um dos registros mais poderosos de sua carreira. A ideia surgiu do amigo Caetano, que mandou sugestões de canções em uma fita cassete.
O encontro com as raízes brasileiras (e paraguaias, e lusitanas) não foi só musical. Gal vestiu a persona e posou para fotos pintada e com os seios de fora. “Eu me lembro que foi uma sessão longa, ao ar livre, talvez no Jardim Botânico (do Rio de Janeiro). Eu estava com um tapa sexo, não era nem biquíni, e as fotos foram feitas pelo Antonio Guerreiro, que também fez a roupa”, conta.
“Fizemos diversas opções, ela sempre de Índia e nua, com os seios aparecendo, mas optamos pela foto com o corte (na barriga), onde existia muita sensualidade”, lembra o fotógrafo.
A censura vetou a exposição da capa e o disco foi vendido nas lojas dentro de um plástico opaco, azul. Misteriosamente, a letra de “Presente Cotidiano” de Luiz Melodia, também caiu na navalha. “Eu dava risada. Achava tudo tão ridículo, não via motivo para se proibir uma capa daquela, tampouco achar aquela canção subversiva. Achava uma loucura, um absurdo, me dava raiva”, conta Gal.
Retrato de uma separação
A parte íntima que marca a capa e a história de “Nervos de Aço”, 6° disco de Paulinho da Viola, é um coração abandonado e partido. “Na época, muita gente pedia para retirar o disco das lojas. ‘Como podem ter feito isso, uma invasão de privacidade, logo com um sujeito como o Paulinho’”, relembra Elifas Andreato.
Chegado do sambista, o artista gráfico foi chamado para criar a arte. Para entender melhor o que era o novo trabalho, viajou para se encontrar com Paulinho no Rio. “Cheguei lá e o apartamento estava vazio. Ele pegou os banquinhos e tocou ‘Nervos de Aço’. A frase dele quando nos sentamos: ‘perdoe, estou me separando’. Fiquei chocado”.
Elifas se aproximou mais de Paulinho e, entre jogadas de sinuca, percebeu que não tinha para onde fugir. “Conhecendo o casal, a canção do Lupicínio Rodrigues (‘Nervos de Aço’), pensei: preciso ser lupicíniano”. Ao mostrar a imagem de Paulinho aos prantos, com um ramalhete de flores na mão, o cantor inicialmente ficou incomodado. Admitiu mais tarde, diante da gravadora, que relutava com a ideia. “Ele disse: 'É difícil, mas essa É a capa do disco’”, conta Elifas.
O UOL tentou falar com Paulinho, mas não obteve sucesso. À reportagem, a assessoria do cantor afirmou: "Paulinho disse que nem estava separado na época".
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