Após crise, pagode mostra que está vivo com revival de hits e novos fãs
Atire a primeira pedra quem não sabe cantar "Lua vai iluminar os pensamentos dela" ou "Eu me apaixonei pela pessoa errada, ninguém sabe o quanto que eu estou sofrendo". Um momento nostálgico, acompanhado de um sorriso de canto de boca, já deve ter batido aí. E não precisa esconder: o pagode romântico da década de 1990 ainda está vivo e é legal de se ouvir. As músicas amadas e odiadas na mesma proporção ganham, agora, novos holofotes, chamando atenção e admiração de roqueiros, alternativos e de antigos "haters".
Sem lançar uma novidade marcante nos últimos tempos, o gênero se mantém vivo com o revival de bandas que marcaram a época. A formação original do Só Pra Contrariar se reuniu para que seus megahits -- "Que Se Chama Amor", "Meu Jeito de Ser", "Depois do Prazer" e "A Barata"-- não ficassem restritos ao karaokê e festas de família. Alexandre Pires está novamente à frente do grupo, após experimentar, nos últimos 11 anos, certo prestígio internacional, ainda que sem nunca chegar ao apelo das músicas da banda. A turnê atual é um sucesso, rendeu CD e DVD ao vivo e foi estendida até 2015. Os Travessos, grupo liderado pelo vocalista Rodriguinho e que lançou o primeiro disco em 1999, também anunciou turnê para este ano.
Na rabeira da volta, Chrigor (Exaltasamba), Salgadinho (Katinguelê) e Marcio (Art Popular), três integrantes de bandas de sucesso, lotam as casas por onde passam com o projeto Amigos do Pagode 90. Raça Negra, espécie de Beatles do gênero, nunca parou na estrada, mas conquistou audiência e comoção invejáveis com show transmitido ao vivo pelo canal Multishow no último dia 25 de janeiro. No Twitter, a hashtag #RaçaNegranoMultishow ficou entre os assuntos mais comentados.
No ano passado, o grupo ganhou um tributo alternativo com artistas da cena indie chamado "Jeito Felindie", uma brincadeira com a canção do Raça, "Jeito Felino". "Cigana" abre a homenagem com a voz adocicada da pernambucana Lulina. "Passei boa parte da adolescência ouvindo pagode porque era o que mais tocava nas rádios em Olinda (PE) e nas festas da minha família. Eu era fã de Nirvana e Sepultura, mas ainda assim gostava de vários pagodes da época", contou ela ao UOL.
"Hoje, a memória afetiva é muito grande. Percebo que sei decorado boa parte dos pagodes clássicos. Ter participado do tributo foi um resgate dessas boas recordações", disse Lulina. E quem nunca?
Vanguart e Chay tocam "Cilada" (Molejo)
No começo desse ano, a banda cuiabana Vanguart, da mesma seara de Lulina, fez um vídeo descompromissado tocando "Cilada", do Grupo Molejo, ao lado do cantor e ex-Rebelde Chay Suede. "Eu não gostava [da banda], mas a música é bonita", disse o vocalista Hélio Flanders.
A versão arrebatou corações e foi sucesso nas redes sociais, espaço onde o próprio Molejão se reinventou. Hoje, o grupo que sempre misturou trocadilhos com temas infantis são quase um meme. Na conta oficial no Facebook, fotos das conhecidas caretas do vocalista Anderson Leonardo são compartilhadas e os discos antigos, disponibilizado na íntegra no YouTube. Ganharam até campanhas cômicas como "Molejo é melhor que Beatles".
"As pessoas adquiriram respeito. Houve um amadurecimento. Naquela época [gostar de pagode] era coisa de maloqueiro, de bêbado. Os roqueiros perceberam que o samba fala da vida deles também. Você ouve 'Jeito Felino' e fala: 'Aquela mina tem o jeito felino'. Isso chega ao coração deles", explicou Luiz Carlos, vocalista do Raça, completando: "Roqueiro também ama".
Salgadinho avalia que o cenário só não está bom para os grupos de pagode novos, parte pelo mecanismo criado na época em que o Katinguelê tocava de cinco em cinco minutos nas rádios. "Até existem bandas de pagode surgindo, mas não para a grande mídia. Ficou tudo muito inflacionado depois do sertanejo. Como essa coisa do jabá, que sempre existiu, mas que depois do sertanejo virou algo maior. Hoje é mais linha de produção. O que está dando certo? É isso aqui? Então vamos por aqui. Tem muito pagodeiro que virou sertanejo", disse ele. Para ele, os hits plantados nos anos 90 abrem as portas com mais facilidade.
Pagode ao vivo na TV
No último dia 25 de janeiro, o vocalista Luiz Carlos e os integrantes do Raça Negra subiram ao palco do Chevrolet Hall, em Belo Horizonte, sob uma recepção ruidosa. Todos no palco pareciam emocionados não apenas com o público, mas com a inegável sensação de renascimento. Cinco dias antes, o grupo sofria um acidente de ônibus que levaria todos os passageiros para o hospital.
De tala preta no braço ("Tinha uma mais clara, mas aí iam pensar que o nego aqui estava como vitiligo", brincou) e uma bota ortopédica no pé, Luiz Carlos suava enquanto cantava "Cheia de Manias" e "É Tarde Demais". "Eu estava com muita dor. Mas ali não podíamos falhar, todos os ingressos tinham sido vendidos e ia ser transmitido ao vivo. Mas a música supera. Acaba com a dor", contou ele ao UOL.
Bebendo na fonte de Arlindo Cruz e Sombrinha, Fundo de Quintal e Zeca Pagodinho, o Raça começou a tocar em 1983 e ousaram mais que ninguém. Eles são citados pela maioria dos pagodeiros dos anos 90 como uma espécie de "pais".
A banda inovou nos figurinos e apostou em cenário para os shows. Foram, na conta do vocalista, 48 milhões de discos vendidos. A mistura de gêneros é apontada pelo artista como responsável pela popularidade. Eles tocavam versões de Titãs, Legião Urbana e Roberto Carlos em ritmo de samba. O que ele achou do tributo underground ao Raça, "Jeito Felinde"?. "[O som] é diferente, meio estranho, mas adorei. Eles fizeram na maior da boa vontade".
Falando assim, Luiz parece com Renato Russo, quando o líder do Legião Urbana comentou sobre a versão do Raça Negra para "Será". "Eu tenho um CD-ROM com Renato Russo falando da versão da Simone, mas que a que ele mais gostava era a do Raça Negra", relembra. "Pô, isso vindo do Renato Russo..."
Dinheiro, óculos na cabeça e milhões de discos vendidos
Com seus antigos grupos, Chrigor, Salgadinho e Marcio venderam em média, cada um, 8 milhões de cópias. "Famílias se criaram ao som das nossas músicas", comentou o ex-integrante do Art Popular.
Todos eles vieram de uma cena independente em que faziam sucessos nas periferias de forma espontânea. Vendo isso, as gravadoras decidiram surfar na onda e criou-se um modismo, que atingiu inclusive a classe mais abastada do Brasil. Era chutar a árvore para cair os frutos dos mais variados grupos de pagode, desde os de raiz até as bandas criadas pela própria gravadora. "Está melhor agora do que antes", crava Luiz Carlos. "Agora eles vão ao seu show por nossa causa. Sem modismo, está algo mais consciente".
A onda foi tão forte que era muito comum ligar a TV e ver sapatos lustrosos, camisas estampadas, calça agarrada, cabelo raspado ou descolorido e óculos escuro na cabeça. "Um dia encontrei com um cantor sertanejo que comentou sobre essa época. As gravadoras falavam que Salgadinho era um símbolos sexual. Ele comentou: 'Eu tinha ódio de você. Era demais'", comentou o próprio ex-vocalista do Katinguelê.
"Eu pintei o cabelo, colocava roupa de plástico. O Márcio tinha uma coisa mais teatral e o Salgadinho estava sempre com óculos na cabeça", relembra Chrigor. Hoje o estilo dos rapazes é mais casual, nada de excesso. Luiz Carlos é o único que ainda gosta de um colete de couro.
Com a queda do império fonográfico, na década de 2000, os grupos foram minguando. Muitos continuam na estrada, mas com novos integrantes. O Exaltasamba, com o Thiaguinho no lugar de Chrigor, foi quem sobreviveu da melhor maneira possível, gravando discos, DVDs e emplacando sucessos nas rádios. Os próprios ex-integrantes lançaram projetos solos, mas à revelia do público que possuíam.
Hoje, eles gozam de um sentimento de redescoberta também por parte das antigas gravadoras. "Temos convites aí...", Salgadinho deixa no ar.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.