David Byrne usa síndrome autista para estudar "biologia" da música em livro
Líder do Talking Heads e espécie de xamã musical, David Byrne quer mais do que fazer música. "Eu quero falar sobre o contexto externo da música, questões financeiras e tecnológicas, arquiteturas acústicas, coisas que afetam a maneira de se fazer música", explica. Parte desse interesse, em dar lógica ao som e percepção, sai agora no livro "Como Funciona a Música", lançado no Brasil pela editora Amarilys com quase dois anos de atraso, mas em uma edição caprichada, fiel ao original. Tudo a pedido do músico de 62 anos.
Longe de ser um manual, o livro busca responder a intrincada questão com base nas experiências pessoais que Byrne passou ao lado da antiga banda, que por acaso criou outros braços dentro do post-punk e da new wave nas décadas de 70 e 80, de parceiros como Brian Eno e de suas viagens por povoados africanos e guetos brasileiros.
Em conversa com o UOL por telefone, direto de seu escritório em Nova York, Byrne ri com vontade, abusa das interjeições e faz longas pausas durante a entrevista, como se estivesse procurando a melhor forma de dar continuidade ao seu pensamento. Durante a ligação, enquanto sirenes do lado de lá interferiam na entrevista, Byrne falou sobre o diagnóstico de Síndrome de Asperger, e indicou que o transtorno neurocomportamental o ajudou a ter foco no ousado projeto.
"Eu tenho esse espectro autista. Quando fui diagnosticado, pensei: 'Realmente, eu reconheço esses traços em mim'. Muitas vezes ele ganha esse status de 'doença de gênio', mas é só um lado da questão", ele ri. A síndrome é caracterizada pelo interesse intenso e específico com um tema em detrimento de outras atividades. "É útil. Te obriga a ficar focado. Às vezes até demais. Pode ser bem útil para músicos".
Playlist é o novo álbum
Escrito durante muitos anos, com base em artigos feitos por encomenda para a revista "Wired" a partir de 2007, o livro traça a biologia da música. Ganhador do Oscar pela trilha sonora do filme "O Último Imperador", de 1988, o escocês gravou discos com Brian Eno, Caetano Veloso e a cantora St. Vincent, e lançou, através do seu selo Luaka Bop, de brasileiros, como Tom Zé, à peruana Susana Baca.
Ele, no entanto, não vê com pessimismo a cena musical atual, mesmo quando o conceito do álbum tenha perdido parte de sua função e preferência. "Isso é verdade", admite. "Ninguém mais ouve um disco inteiro. Mas eu ouço muita coisa criativa, muita música que eu gosto, então eu não acho que a música esteja perdendo esse espaço na vida, que já não servem mais para entreter".
Para Byrne, as playlists que povoam blogs, players e sites de streaming têm substituído o conceito do disco. Agora, cada um ouve do seu jeito e na ordem que bem entender. "Eu acho que a gente ouve até mais músicas do que antes. Levando em consideração que as pessoas estão com fones o tempo todo".
"A música tem se tornado, mais do que nunca, uma trilha sonora das nossas vidas. Ao mesmo tempo, há muita música em qualquer lugar que você vá, em cada loja que você entra, às vezes no shopping, nas ruas, em todo lugar", observa. "Eu continuo comprando álbuns ou fazendo download, mas, como todo mundo, escolho minhas favoritas. Eu geralmente faço minha própria playlist. É o que todo mundo faz agora".
A facilidade da era digital, no entanto, traz pedras no caminho apenas para os artistas que ainda buscam o caminho tradicional para o sucesso. "A gravadora investia um valor para uma turnê e para toda a divulgação. No passado, eles poderiam acreditar em uma carreira assim. Isso servia bem. Agora você precisa investir a mesma quantidade de dinheiro para promover apenas uma música, e eles já não fazem tanto dinheiro de qualquer jeito, visto o streaming e pirataria por aí. Está um pouco difícil para pequenos selos e para os artistas sobreviverem dessa forma".
Conhecido ativista do ciclismo (ele se nega a ter um carro em Nova York), Byrne conta que seu player o acompanha em qualquer lugar que vá. Embora tenha deixado de ouvir enquanto pedala na rua ("É perigoso", diz), ele se diverte ao consultar o celular.
"Eu tenho umas coisas aqui... uau". E lista: "Tem Sun Kil Moon, eles têm composições muito boas. Tenho aqui o novo da St. Vincent. E... uau, um grupo chamado Blood Orange, Anna Calvi, Orquestra Imperial, o novo disco de Moreno Veloso. Nossa, tem muita música brasileira no telefone", comenta, empolgado. "Tem um cara que me falaram... Batatinha. Lindos sambas. Tão difícil de encontrar aqui".
O foco de Byrne, impulsionado pela Síndrome, agora está voltado para a finalização de um ousado projeto, um musical da Era Disco sobre a Primeira Dama das Filipinas, Imelda Marcos, em constante atualização. "Eu tenho trabalhado nesse 'disco musical' há muito tempo, revistando e atualizando para voltar com o espetáculo em outubro em Londres. É como entrar em outro mundo. Eu amo, mas espero que não leve mais tempo, porque já gastei anos demais nisso".
Parte do resultado musical da experiência saiu no álbum "Here Lies Love", de 2010, composto em parceria com Fatboy Slim. "Imelda adorava discotecas e eu quis que Fatboy Slim participasse do projeto para que o musical e o disco saíssem com a alma de clube noturno".
Fora o objeto de estudo, Byrne guarda histórias deliciosas que viveu ao lado de David Bowie e Lou Reed. Ele relembra de quando Bowie lhe presenteou com um livro de discursos de Fidel Castro e de quando Reed sugeriu que ele não usasse camisas de manga curta em shows por conta dos braços peludos do escocês. "É tudo verdade", ele gargalha ruidosamente. Por que não escrever um livro ainda mais autobiográfico? Sem ironia ou falsa modéstia, Byrne responde: "Eu não tenho boas histórias para contar."
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